São Paulo, 23 out (Arquidiocese SP/SIR) - A 13ª Assembleia Geral
Ordinária do Sínodo dos Bispos está revelando um consenso geral sobre a
necessidade de promover uma nova evangelização. Mas as implicações dessa
ação da Igreja nem sempre são compreendidas da mesma maneira,
dependendo do contexto histórico, sociocultural e religioso de cada
Continente e país onde a Igreja atua. Nesta entrevista concedida ao
jornal O São Paulo, o cardeal Odilo Scherer trata de algumas questões
são fundamentais para a nova evangelização e a transmissão da fé.
Por que é necessária uma nova evangelização?
Antes de tudo, porque a Igreja é missionária por sua própria natureza
e ela não poderia nunca deixar de evangelizar; hoje, isso precisa ser
feito de formas novas, tendo em vista as grandes mudanças pelas quais o
mundo passa, as formas diversas como as pessoas olham a vida, os valores
que as orientam, como se relacionam entre si e como expressam a própria
busca religiosa.
Que fatores adversos a missão evangelizadora da Igreja encontra hoje?
São vários, mas vou destacar alguns, que decorrem da evolução do
pensamento filosófico dos últimos séculos e também do desenvolvimento
tecnológico atual. A secularização trouxe consigo o secularismo, que
exclui Deus do mundo e da vida humana; Deus é visto por muitos como
supérfluo, desinteressante para as pretensões humanas e até um atrapalho
para a felicidade humana. Além disso, pretende-se que o mundo se
explica por si mesmo. Mas também há o individualismo, que coloca o
indivíduo no centro de tudo, como se o homem fosse o seu próprio
“deus”... Daí decorre o subjetivismo, que não reconhece verdades
“externas” ao sujeito; com isso, nega-se a possibilidade de ter noções
comuns sobre o ser humano, por exemplo, e de princípios éticos comuns.
Cada um “é” a própria verdade. Evidentemente, o Cristianismo, que tem
sua base na revelação divina, não encontra espaço nesse estado de
espírito.
A religião deixou de interessar ao homem de hoje?
Certamente não, tendo em vista a abundância de propostas religiosas e
o constante surgimento de novas. Isso demonstra que o ser humano, no
fundo, está à procura de Deus. Mas é preciso examinar as muitas buscas
religiosas; por vezes, também elas trazem uma forte marca de
individualismo e subjetivismo, estando mais centradas no próprio
sujeito, na satisfação de suas necessidades e anseios imediatos, ou de
seus sonhos para a vida neste mundo, do que numa relação com o Deus
sobrenatural, transcendente e pessoal. Com dificuldade, aceita-se falar
na verdade sobre Deus e o homem, ou sobre a adoração e a obediência
devidas a Deus. Mas aceita-se bem uma religião “útil”, que ajude a
resolver os problemas do dia a dia; os critérios da eficácia e da
utilidade, muito comuns na cultura tecnicista e mercadológica, também
estão presentes nessa nova religiosidade. Mas consistiria nisso a
verdadeira religião?
E em que consiste a verdadeira religião?
Antes de tudo, na aceitação de Deus, como Deus, e da nossa condição
de “não-Deus”, ou seja, de criaturas. Esse é o primeiro ato de fé, do
qual decorrem a adoração e o louvor a Deus; hoje tem-se dificuldades
para aceitar a “criaturalidade”, por causa de certa pretensão de
onipotência humana. Segue a busca da verdade sobre Deus, que passa pelo
“ouvir” a Deus, de muitas formas, ajudados pelas capacidades humanas.
Vem, então, o desejo de comunhão e sintonia com Deus, para expressar na
vida a dignidade e a beleza dessa relação pessoal com Deus, que no
Cristianismo se traduz numa relação familiar, de pai para filho e de
filho para pai; ao mesmo tempo, numa relação de fraternidade e respeito
para com os demais homens, também filhos de Deus, e no apreço e respeito
por toda obra de Deus.
É comum ouvir dizer que “toda religião é boa” e que todas
elas levam para Deus do mesmo modo. Isso é verdadeiro, ou a nova
evangelização precisa também fazer uma crítica da religião?
Sim, no sentido de um “exame crítico” das formas de religiosidade e
de religião. Mesmo se devemos respeitar profundamente a consciência e as
escolhas religiosas de cada pessoa, objetivamente, não se pode dizer
que todas as religiões são iguais. É só examinar o que cada uma afirma
sobre Deus, o ser humano, as relações do homem com Deus, com o próximo e
com o mundo, a moral, as realidades sobrenaturais e eternas e o fim
último do homem. As diferenças são muito grandes. Cada pessoa precisa
ser estimulada a buscar a verdade, para responder sinceramente ao anseio
profundo de verdade e de sentido que há no coração humano, sem se
contentar apenas com o que mais agrada, o que é mais fácil e o que tem
efeito mais imediato e verificável.
Portanto, a nova evangelização passa por uma renovada reflexão sobre o homem?
Sim, esta é uma das questões cruciais; falar de Deus é também falar
do homem e o Cristianismo não o faz apenas como mera ilustração do
pensamento. A fé cristã diz diretamente respeito ao ser humano e, sem
levar isso em conta, não se consegue propor ao homem de hoje a novidade
do Evangelho. O Papa João Paulo II repetiu em várias ocasiões o que já
estava na Gaudium et Spes: “no seu Filho Jesus Cristo, Deus revelou
plenamente ao homem a verdade sobre o homem”. A fé cristã é “boa
notícia” para o homem!
Em poucas palavras, em que consiste a nova evangelização?
É difícil definir a nova evangelização, pois ela é um processo, e não
um “objeto” já pré-estabelecido. Da parte da Igreja, ela consiste,
antes de tudo, em acolher de forma renovada a graça do Evangelho e de se
fazer discípula e missionária fiel de Cristo; consiste em expressar
isso, de forma alegre e corajosa, nas muitas formas de sua própria vida,
ação e representação simbólica; e consiste em compartilhar essa Boa
Nova com o mundo, também de muitas maneiras, quer pelo diálogo cultural,
inter-religioso e ecumênico, quer pelo testemunho de presença e
proximidade para com todo ser humano, especialmente os que sofrem mais;
consiste no empenho para edificação do mundo “como Deus quer”, na
justiça, solidariedade e respeito. Mas também é anúncio renovado do
Evangelho, de forma explícita, convidando à fé em Cristo e à
participação na vida eclesial. A Igreja tem muita riqueza espiritual
para partilhar com a comunidade humana; mesmo respeitando e apreciando
as contribuições vindas de outras fontes, ela mesma precisa dar sua
contribuição, a partir de sua experiência, sem medo da contradição,
sabendo que tem muito de bom para partilhar.
Qual está sendo a contribuição da Igreja no Brasil e na América Latina para o Sínodo?
Penso que seja uma contribuição apreciável. O Documento de Aparecida
foi citado muitas vezes no Plenário do Sínodo e até mesmo distribuído,
numa tradução italiana. A reflexão e a experiência já feitas na América
Latina sobre a nova evangelização serão importantes para a Igreja
inteira.