Basicamente, cumprir a Lei não é
submeter-se a ela de maneira ingênua, como se a Lei fosse primigênia; a
Lei está a serviço dos seres humanos, para proteger sua dignidade.
Por Raymond Gravel*
Estamos no coração do Sermão da Montanha do Evangelho de Mateus. À
primeira vista, podemos pensar que a interpretação ou a aplicação da Lei
de Moisés proposta pelo evangelista Mateus é impossível, de tão
exigente que é o que Jesus nos pede nesse discurso; por outro lado,
quando nos detemos um pouco mais, nos damos conta rapidamente de que se
trata de um convite à ultrapassagem: ultrapassar a Lei, as regras, os
mandamentos, os preceitos, as proibições, para alcançar a pessoa humana,
todos os humanos, no respeito da sua dignidade de mulheres, homens,
filhos e filhas de Deus, de irmãs e irmãos em Cristo.
Basicamente, cumprir a Lei não é submeter-se a ela de maneira ingênua,
como se a Lei fosse primigênia; a Lei está a serviço dos seres humanos,
para proteger sua dignidade, sua integridade e sua liberdade. O exegeta
francês Jean Debruynne escreve: “Os mandamentos são os mandamentos de
Deus, eles são apenas preceitos, ao passo que o homem e a mulher são
mais que a lei, eles são os próprios filhos de Deus. Jesus não é um
mandamento de Deus, ele é o Filho de Deus. Quando se trata de noras e
cunhadas, genros ou netos, sobrinhos, amigos ou vizinhos, o respeito
pelas pessoas é sempre maior do que o respeito à lei. Aos olhos da fé,
cada rosto é mais que um mandamento, é a própria imagem de Jesus”.
Por isso, Jesus não veio para abolir a Lei; ele veio para cumpri-la,
isto é, para passar da lei ao espírito: “Não pensem que eu vim abolir a
Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt
5,17). É uma questão de justiça: “Com efeito, eu lhes garanto: se a
justiça de vocês não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês
não entrarão no Reino do Céu” (Mt 5,20). Ao mesmo tempo, Jesus se
dirige à nossa inteligência, apela à nossa responsabilidade no respeito
da nossa liberdade.
Na primeira leitura de hoje, dois séculos antes de Jesus, o sábio Ben
Sirac reconheceu ao homem sua responsabilidade diante da Lei de Moisés e
sua inteira liberdade diante desta escolha: “Se você quiser, observará
os mandamentos, e sua fidelidade vai depender da boa vontade que você
mesmo tiver. Ele pôs você diante do fogo e da água, e você poderá
estender a mão para aquilo que quiser. A vida e a morte estão diante dos
homens, e a cada um será dado o que cada um escolher” (Eclo 5,15-17).
Portanto, a única liberdade que o homem não tem é a de não escolher. Mas
essas escolhas têm repercussões sobre os outros, porque nós não estamos
sozinhos no mundo; nós fazemos parte de uma coletividade, de uma
comunidade. E Deus não é indiferente à nossa escolha: “Seus olhos estão
sobre aqueles que o temem, e ele conhece cada ação que o homem realiza”
(Eclo 15,19).
No trecho do Sermão da Montanha de hoje, Mateus retoma quatro regras da
Lei de Moisés que os escribas e os fariseus respeitavam
escrupulosamente, prendendo-se à letra, mas sem o espírito e longe do
coração. Mateus, que é um judeu convertido ao cristianismo, usa um
gênero literário, a hipérbole, que é um aumento, um exagero, uma
amplificação, destinada a produzir uma forte impressão, para que os
cristãos da sua comunidade compreendam que eles não devem impor os
preceitos judaicos à maneira dos escribas e fariseus na sua vida de fé
cristã, na Igreja. Mateus interpreta a Lei, colocando o acento sobre o
ser humano, a serviço de quem ela deve estar...
1. "Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: ´Não mate! Quem matar será
condenado pelo tribunal´" (Mt 5,21). À condenação da morte, o Jesus de
Mateus opõe a condenação da cólera, do insulto e do desrespeito do
outro, do irmão, do semelhante. Basicamente, não matar não é tudo, mas
também ter relações harmoniosas com os outros, porque somos todos irmãos
e irmãs. É até mais importante a reconciliação com o outro do que a
oferenda sobre o altar ou a missa do domingo: “Portanto, se você for até
o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem
alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá
primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois volte para apresentar a
oferta” (Mt 5,23-24).
2. "Vocês ouviram o que foi dito: ´Não cometa adultério´" (Mt 5,27). É
no olhar do proprietário (a avareza) posto sobre o outro que se joga o
adultério, e não no momento do ato sexual propriamente dito. Na época de
Mateus, qualificava-se de adúltera a mulher seduzida e não o homem
sedutor. Ao aplicar ao desejo do homem o adultério, Mateus inverte a
culpabilidade que era atribuída somente à mulher: "Eu, porém, lhes digo:
todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu
adultério com ela no coração" (Mt 5,28). Esta interpretação chocou os
homens que tinham todos os direitos sobre as mulheres. Ao mesmo tempo, é
uma maneira de fazer justiça às mulheres do século primeiro.
3. "Também foi dito: ´Quem se divorciar de sua mulher, lhe dê uma
certidão de divórcio´" (Mt 5,31). Mais uma vez, o Cristo de Mateus quer
devolver às mulheres sua dignidade reconhecendo sua igualdade. Com
efeito, o problema do divórcio, na sociedade do tempo do domínio
masculino, dependia da iniciativa do marido. O futuro de uma mulher
repudiada anunciava-se sombrio... E é por isso que Mateus defende aqui
os direitos das mulheres mais do que a proibição da separação: "Eu,
porém, lhes digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser
por causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e que se
casa com a mulher divorciada, comete adultério" (Mt 5,32).
Parece-me que há muita sabedoria nessas palavras de Mateus; acreditamos
ouvir São Paulo, na sua primeira Carta aos Coríntios (segunda leitura de
hoje), onde o apóstolo nos fala da sabedoria: “Mas, como diz a
Escritura: ‘o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração
do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o
amam’. Deus, porém, o revelou a nós pelo Espírito. Pois o Espírito sonda
todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus" (1 Cor 2,9-10).
4. "Vocês ouviram também o que foi dito aos antigos: ´Não jure falso´,
mas ´cumpra os seus juramentos para com o Senhor’” (Mt 5,33). A questão
que Mateus coloca é a seguinte: Por que há a necessidade de fazer
juramentos? Será porque não somos confiáveis? Faltamos com a
sinceridade? Não podemos confiar nas irmãs e irmãos? Entre humanos? Este
é o problema do juramento e do falso juramento. Ao exagerar a aplicação
desta lei, o evangelista Mateus nos recorda simplesmente a nossa
responsabilidade em relação aos nossos compromissos e em relação às
nossas relações com os outros: “Diga apenas ‘sim’, quando é ‘sim’; e
‘não’, quando é ‘não’. O que você disser além disso, vem do Maligno” (Mt
5,37).
Para terminar, se Mateus, nessa passagem do evangelho de hoje, levanta a
tripla questão da morte, do adultério e dos juramentos, não é uma
escolha aleatória; são três referências aos mandamentos da Lei de Moisés
que nós também chamamos de mandamentos de Deus. O exegeta Jean
Debruynne escreve: “No tempo de Jesus, a situação chegou a tal ponto que
os crentes preferiam respeitar os mandamentos mais que as pessoas. O
amor à lei valia mais que o amor aos outros. Se as pessoas renunciavam a
matar não era pelo respeito à vida do seu próximo, mas por medo da lei.
As pessoas condenavam o adultério não por respeito à mulher e ao homem,
mas porque era proibido pela lei. Quanto aos juramentos, as pessoas os
faziam ao longo do dia porque eles preferiam confiam mais nos juramentos
que nos outros. Em um grande gesto, Jesus varre tudo isso: foi dito...
eu, porém, vos digo... O que Jesus afirma é que o respeito do homem é
anterior ao respeito à regra”. E eu acrescentaria: e assim deve ser
ainda hoje... É preciso passar da letra ao espírito. Infelizmente,
estamos longe disso!
Réflexions de Raymond Gravel
*Raymond
Gravel é padre da Diocese de Joliette (Canadá). O texto é baseado nas
leituras do 6º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico (16 de
fevereiro de 2014). A tradução é de André Langer.