O novo livro do Papa Ratzinger é
dedicado à infância de Jesus. O seu alvo é a exegese contemporânea,
aquela que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia o
problema da historicidade das muitas narrações evangélicas. Mas a
tentativa de Bento XVI está fadada ao fracasso, porque as contradições
dos relatos não pode ser remediadas. A análise é do teólogo italiano
Vito Mancuso.
Com
o livro intitulado A infância de Jesus que chega às livrarias dos
principais países do mundo, conclui-se a obra total de quase mil páginas
em três volumes dedicada por Joseph Ratzinger a Jesus de Nazaré. Com
ela, ele pretende fazer com que os católicos voltem a identificar
narração evangélica e história real como ocorria até algumas décadas
atrás, antes do desenvolvimento da moderna exegese histórico-crítica. O
autor atinge o seu objetivo? A meu ver, não, porque se trata de uma
mission impossible.
Todos amamos o Natal com a sua atmosfera de alegria e de paz, e esse
novo livro do papa é uma grande ajuda para viver a sua espiritualidade. O
objeto são os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus e do
Evangelho de Lucas, os chamados "evangelhos da infância". Por séculos,
eles foram lidos como relatos históricos reais, mas hoje a exegese
bíblica histórico-crítica é quase unânime em declarar o contrário. O
objetivo do papa é de que os evangelhos da infância possam voltar a ser
lidos como historicamente fundados.
O seu adversário de consequência não pode ser senão a exegese que,
privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia a problemática
historicidade de muitas narrações evangélicas. Com isso, os exegetas não
querem dizer que os Evangelhos são falsos, mas só que, com base neles,
não se pode reconstruir com certeza a história de Jesus, muito menos a
do seu nascimento, e que é preciso lê-los sabendo que a finalidade é
teológico-espiritual e não historiográfica.
Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações
simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese
histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões. A
consequência inevitável, porém, é que o Jesus dos Evangelhos não
coincide com o Jesus da história, isto é, o exato oposto da intenção
programática de Ratzinger declarado no primeiro volume: "Apresentar o
Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico em
sentido propriamente dito". E, precisamente por isso, também no novo
livro assim como nos anteriores, o papa dirige ataques recorrentes à
exegese histórico-crítica (cf., por exemplo, as páginas 25, 60, 62, 78,
123).
Mas, como todos aqueles que, antes dele, tentaram harmonizar os
relatos evangélicos, Ratzinger também sobrevoa sobre as contradições
entre os relatos de Mateus e de Lucas. São eles que tornam impossível
uma história da infância de Jesus digna desse nome, como consideram
estudiosos do calibre de Brown, Sanders, Meier, Dunn, Barbaglio, Fabris,
Maggioni, Jossa, Ortensio da Spinetoli, Pesce e muitos outros.
Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade
dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações
sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a
transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser
harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em
Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a
Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa
dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de
Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o
Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao
templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se
preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para
casa em Nazaré da Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter
estado no Egito e pela primeira vez (Mt).
Além disso, é oposta a atmosfera abrangente que envolve o nascimento
de Jesus, real e trágica em Mateus, simples e bucólica em Lucas: a quem
dar crédito? Na mente dos fiéis, os dois relatos se misturam sem
distinguir os elementos de um e de outro, e o papa promove essa
tradicional mistura acrítica, mas a exigência historiográfica não o
permite; os dados são ou como Mateus os apresenta ou como Lucas os
apresenta, ou nem de um modo nem de outro; em todo caso, não são
harmonizáveis. Portanto, se fosse verdade, como escreve Ratzinger, que
Mateus e Lucas "queriam escrever história, história real, acontecida"
(p. 26), encontraríamos realmente diante de um belo problema, porque um
dos dois evangelistas seguramente estaria errado.
Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal
chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p.
65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o
extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais.
Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa
atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos
Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e
quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a
Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante
de púrpura.
É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a
concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem
escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua
vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo
isso leva a duvidar muito do que o papa sustenta.
A realidade é que os Evangelhos da infância apresentam um perfil
histórico geral bastante improvável. O dado histórico seguro (o
nascimento de Jesus) é circundado por uma série de particulares
incertos, senão improváveis, começando pelo lugar do nascimento, que
para o papa é, obviamente, a tradicional Belém, enquanto "a maioria dos
estudiosos duvida que Jesus nasceu em Belém" (The Cambridge Companion to
Jesus, p. 22), e um exegeta católico Raymond Brown chegou a falar de
"provas positivas em favor de Nazaré".
Os Evangelhos, portanto, não são confiáveis? Não, são dignos de
confiança, mas contanto que se diferenciem neles diversos níveis de
historicidade, isto é, de dados historicamente seguros, dados prováveis e
dados improváveis. Em particular, os evangelhos da infância são uma
interpretação do significado existencial de Jesus, para cuja
manifestação o relato do seu nascimento foi enriquecido por uma série de
elementos simbólicos, como era normal na antiguidade para os grandes
personagens. Tudo isso ao longo dos séculos serviu para atrair a atenção
sobre Jesus, porque no passado a humanidade identificava a presença do
divino com os milagres e o extraordinário. Hoje, no entanto, ocorre o
contrário. Hoje, os milagres e o extraordinário são mais de dano do que
de ajuda para a autêntica comunicação espiritual. Chegamos a uma visão
de mundo mais pacata, mais desencantada, mais realista; aos frisos do
barroco, prefere-se a austera simplicidade do romantismo.
Essa maior maturidade se reflete no trabalho da exegese bíblica
mediante o método histórico-crítico, um trabalho sério e altamente
qualificado, como nunca antes havia acontecido na história, um trabalho
de porte internacional e interconfessional cujos resultados se oferecem à
consciência sem forçações dogmáticas.
Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o
prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona
o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já
citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da
Pontifícia Comissão Bíblica.
Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da
infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de
fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" (La nascita
del Messia [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677).
Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra,
apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do
destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.
O artigo é do teólogo italiano Vito Mancuso, publicado no jornal La Repubblica, 21-11-2012.