Brasília,
29 out (CNBB/SIR) - É impossível pensar na Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) sem recordar a figura do Arcebispo de Mariana
(MG), dom Luciano Mendes de Almeida. Na entidade, ele foi Secretário
Geral por dois mandatos (1979-1986) e Presidente, também por dois
mandatos (1987-1995).
Em outro momento, foi membro da Comissão Pontifícia Justiça e Paz
(1996-2000) e da Comissão do Secretariado para o Sínodo (1994-1999). Foi
também vice-presidente do CELAM (1995-1999). Eleito pela CNBB, foi
delegado à Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, em
1997. Faleceu aos 27 de agosto de 2006. Apresentamos uma parte do
depoimento de dom Luciano no seminário sobre a presença pública da
Igreja no Brasil, por ocasião dos 50 anos da CNBB, e publicado
posteriormente pelo Instituto Nacional de Pastoral e por Edições
Paulinas.
“Vejam, é interessante como certas vezes não é fácil falar. Isso vale
inclusive sobre o que ouvi nesses dias. A minha abordagem sobre a CNBB é
diferente. Ouvi, nesses dias, uma série de avaliações. Para mim, a CNBB
é fruto de um grande amor. Eu dou e darei a minha vida pela CNBB. Como a
mãe, é preciso ver menos os defeitos e mais as qualidades. Guardo da
CNBB uma experiência luminosa, de amizade, de contatos, de lutas, às
vezes, de provas muito grandes, mas tudo isso envolvido em muito amor. E
essa nota do amor, essa unção, acho que não apareceu tanto nesses dias.
É claro, cada um tem o seu jeito de abordar a questão.
Considero o tempo na CNBB, um tempo de enormes graças espirituais -
as pessoas que conheci, a abertura de coração, as experiências sofridas
de prisão, de perseguição, contatos com o governo. Lembro-me de dom
Oscar Romero ... É muito difícil para mim, no contexto das colocações
desses dias, de repente, acrescentar alguma coisa que vem de uma
perspectiva que é muito do coração, o que não tira, creio, a vontade de
ser objetivo. Até hoje, entretanto, conservo da CNBB uma intensidade de
afeto que volta muitas vezes a mim, quando faço oração sobre a vida,
sobre as pessoas que conheci, os contatos que tive. Vocês ouviram dom
Ivo! Minhas palavras inserem-se entre dom Ivo e dom Celso; vivi todo o
tempo, secretário de um, e ao lado do outro quando ele era secretário.
Vocês podem imaginar o que significam dezesseis anos de convivência
fraterna! É muita coisa. É muita lembrança. São muitos fatos!
Então, é possível até escolher alguma coisa. Mas, para que não volte o
aspecto muito pessoal, gostaria que a gente falasse da CNBB, não só com
respeito, mas com “paixão”, porque é uma realização que vem de Deus. A
união que houve, embora seja uma união sofrida e, às vezes, com aspectos
dolorosos, é uma união milagrosa em momentos-chave: união com os
bispos, união com a Santa Sé, união com os padres; experiências de união
com os 55.000 religiosos do Brasil, e com os leigos! Hoje, vamos
descobrindo certos aspectos mais fortes da presença e atuação do
laicato, mas a CNBB sempre, pelo menos nesses anos em que servi em
Brasília, teve as portas completamente abertas para todo mundo que entra
e sai. Não havia distâncias, devido à amizade entre as pessoas. A CNBB
é a casa de todo mundo, a qualquer hora do dia ou da noite. Havia até
um problema para a cozinha. Nunca foi uma casa fechada. Nunca ninguém
apresentou documento para entrar na CNBB.
Vocês sabem que é assim; uma casa que é de todo mundo, uma casa que é
a casa da Igreja no Brasil. Então, como vejo esses aspectos? Vejo assim
com muita gratidão. É claro que quando se trata de dizer que um bispo
foi renovador ou restaurador, respeito isso com carinho, mas não me
sinto à vontade, porque é como a mãe dizer que tem um filho um pouco
deficiente. Ela não fala isso, ela nunca fala, ela dá um beijo, e não se
envolve com essas situações. Não queria que se fizesse uma análise fria
da CNBB. Acho que a CNBB foi um lugar de muita amizade, de muito amor,
de muito perdão que vivi nesses anos. Afinal, são dezesseis anos! Em
primeiro lugar, acho que, quando a gente publicar as atas desse
encontro, tem de haver um certo tom na publicação e alguma apresentação
da CNBB como corpo “vivo”, quer dizer, como realmente uma comunhão e
transparência, que nem sempre podem acontecer, mas que, de fato, muitas
vezes aconteceram. Esta era a primeira coisa que eu gostaria de colocar
em evidência. A segunda é o fato de que a CNBB nunca foi gloriosa.
Nunca foi, digamos, elogiada, nem pela Santa Sé, nem pelo CELAM. Ela
foi e é uma Igreja sofrida, de modo que quem quiser servir na CNBB para
ter um aplauso, uma profissão, não é assim! Quem serve na CNBB -
acredito que hoje seja parecido - tem de ter colete a prova de balas e
tem de ter um coração forte. Você recebe não só criticas, mas, às vezes,
confidências e manifestações profundas que você tem que guardar dentro
de si e administrar isso com fé e oração. De modo que acredito que essa
marca de uma "igreja sofrida" é uma glória para o Brasil, mas não a
glória no sentido de todo mundo achar bonito. Não é assim. Quem conhece
as cartas que a gente recebe, quem sabe o que vem dentro dessas cartas,
quem ouve às vezes as recriminações. Lembro-me de que ao passar por
Roma, em algum Dicastério, falando com alguns bispos, tinha que abaixar a
cabeça, para ouvir repreensões, e fazia isso com muita humildade. Creio
que, se por um lado tenho pela CNBB, digamos assim, um amor
“apaixonado”, por outro lado, é um amor sofrido! Não pensem que quem
ocupa algum cargo, seja ele qual for, vai receber por causa disso uma
espécie de medalha, como a do Sarney. Não vai. Quero dizer a dom Ivo
que, naquele dia em que o Presidente concedia medalhas, eu fui por causa
de dom Helder.
Dom Helder aceitou a medalha e foi, e pediu que eu fosse com ele, e
eu fui. Fiquei muito insatisfeito porque o senhor, dom lvo, não foi e
ele foi. O quê que eu ia fazer? Deixar dom Helder ir sozinho, também não
dava. Mas então, é só para lhes dizer que a relação com o Governo, da
minha parte, sempre foi, não digo dura, mas foi sofrida. Esperava três
horas ou mais para falar com o Ministro da Justiça. Foi no tempo da
prisão dos padres franceses, que saí daqui para ir a Belém e não pude
nem visitá-los. Tive que voltar para Brasília. Às vezes, tinha que
sofrer uma fiscalização e ficar ali dando razões. Vivi esse tempo duro.
Então, quero lhes dizer que considero a CNBB realmente com grande amor.
Não falo com linguagem poética. É um amor sofrido quando você ama uma
pessoa que passa por uma prova. É essa a lembrança que eu tenho da CNBB.
Tive uma vantagem na minha vida.
Em 1981, por causa do CELAM, quando era secretário, fiz parte da
comissão que visitou os bispos da América Central. Foi uma missão que me
deram. Vocês imaginem a situação da Guatemala, de El Salvador, Costa
Rica, tudo, tudo, e falando horas com eles e compreendendo o sofrimento
de dom Oscar Romero, por exemplo. Oh, meu Deus! Quanto padeceu dom
Romero, com aquelas tensões que havia. Tudo isso eu vivi, e vivi, às
vezes, numa situação muito difícil, de não poder nem falar com os
outros. Então nós éramos quatro bispos fazendo essa visita a toda
América Latina. Guardo uma imagem, uma lembrança e um afeto sofrido, e
acho que essa é a marca do Cristo. Não queiramos uma CNBB gloriosa,
reconhecida, vanguardeira, realizando esquemas. Vejam, toda a parte de
planejamento é útil, tudo o que sofremos para elaborar diretrizes,
custou muito trabalho, mas nada disso chega perto da dedicação, por
exemplo, dos assessores! Quanta gente sofreu quando não falaram bem dos
assessores! Quem de nós não sabe que são pessoas que dedicaram a vida
inteira, horas a fio, de madrugada, trabalhando, dando a vida pela
Igreja no Brasil, correndo de lá para cá. Vocês sabem, isso custou muito
mais a nós que estávamos na presidência, do que se tivessem falado de
nós. Primeiro, porque eram grandes amigos. Sempre foram.
Mereciam confiança. Agíamos com a maior transparência. Eles não
podiam, muitas vezes, se defender. Então foi, e ainda é, um momento
difícil, que teve reflexos na nova legislação da CNBB. Tudo isso não
quer dizer que guardo uma lembrança triste daqueles anos. Não é triste, é
sofrida, o que diferente. Você, muitas vezes, enfrenta o sofrimento com
garra, e isso causa alegria. Nosso grupo sempre enfrentou dificuldades.
Vocês podem estar certos de que a gente nunca procurou uma compensação.
Vocês sabem disso, e o maior exemplo para mim é dom Ivo, que podia ter
tido o reconhecimento oficial da Igreja, muito maior do que ele teve,
todos os merecimentos que ele tem, mas ele e a CNBB viveram uma época
difícil. Agora eu queria acrescentar duas grandes realidades que vejo. A
CNBB entra na história como um grande exemplo da presença de Deus.
Porque nós, os bispos, somos tão diferentes uns dos outros. Vocês sabem
disso. Mas houve uma convivência. Há uma convivência, que pode sofrer
desgastes, mas nas horas mais duras estivemos juntos. Posso dizer a
vocês que visitei uma grande parte dos bispos do Brasil naqueles anos,
desde os bispos das áreas indígenas, mais sofridas, até aqueles que
estavam passando por doenças.
Estive com dom Avelar no dia em que recebeu a notícia do câncer.
Depois, ia visitá-lo sempre que estava em São Paulo. Essas visitas
fizeram a gente se conhecer melhor do que numa assembleia. Na
assembleia, a pessoa pega o microfone e diz o que acha naquela hora, mas
as conversas em clima de amizade são diferentes. Uma vez eu cheguei a
Pelotas para visitar dom Jayme. Edifiquei-me porque ele tinha para me
dar apenas um pedaço de pão, e um gole de café, a tal ponto era a sua
vida de pobreza. Nunca me esqueci disso. E assim também eu estive no
Nordeste. Hoje nós estamos comemorando aqui a data de Cajazeiras. O
bispo de Cajazeiras, dom Zacarias, era um pobre total. Não tinha nada.
Usava batina porque não tinha roupa em baixo. Assim, há realmente um
nível de relacionamentos entre pessoas que a história não conta, e que é
mais importante, e é isso que faz a CNBB.
É a ligação existencial, é o perdão quando a gente diz uma coisa
errada, quando a gente, às vezes - eu me lembro - saía de uma
assembleia, procurava o bispo e dizia: "O senhor me desculpe pelo que
falei". Às vezes a gente ia se confessar com ele naqueles dias de
confissão comum: "O senhor me desculpe". Isso é uma coisa muita bonita e
que talvez não exista em outros lugares. Pelo que eu conheço dos bispos
dos Estados Unidos, Canadá, França, Espanha, Itália, convidado que fui
naquelas épocas, como outros também, não era tão forte o tipo de
relacionamento das pessoas. (...)