A análise é de Sérgio Ricardo Coutinho*, presidente do
Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina
(CEHILA-Brasil).
Do filme "Irmão Sol, Irmã Lua"
(Foto: )
|
Mais
que um evento eclesial, o conclave e a consequente eleição de Francisco
– em especial este que foi amplamente acompanhado após o fato novo da
renúncia de Bento XVI – devem ser vistos enquanto um “evento
comunicativo”. No campo dos estudos de “recepção”, Michel de Certeau
destacou a importância para a criatividade das pessoas na esfera do
consumo, suas reinterpretações ativas das mensagens a elas dirigidas e
as táticas para adaptar o sistema de objetos materiais às próprias
necessidades. Um conceito fundamental, segundo ele nesta discussão, é o
de apropriação, às vezes acompanhado de seu oposto complementar, a
recuperação de objetos e significados pela cultura oficial ou dominante.
Nosso objetivo aqui é o de apresentar as apropriações, interpretações
e recuperações dos primeiros gestos do papa Francisco junto a
diferentes grupos eclesiais no Brasil.
Entre os membros da estrutura eclesiástica, de modo especial os
cardeais brasileiros que participaram do último Conclave, Francisco traz
a esperança de uma Igreja “reformada”, mais simples, despojada, ao lado
do povo, para ser capaz de uma “nova evangelização” e se tornar crível.
Dom Raymundo Damasceno Assis (presidente da CNBB)
assim vê o novo papa: “Um pastor que ama o seu povo, que está
inteiramente voltado para o cuidado do seu povo, mas ao mesmo tempo
aberto ao mundo, a todos os demais povos, com os que pertencem a uma
outra religião... um homem de grande simplicidade, de grande amor aos
pobres.
Para Dom Claudio Hummes: “o nome é todo esse
programa. Hoje, a Igreja precisa, de fato, de uma reforma em todas as
suas estruturas. Será uma obra gigantesca. Alguém disse já que a escolha
do nome Francisco já é uma encíclica, não precisa nem escrever”.
Outro grupo eclesial, formado pelos(as) teólogos(as) da libertação, o
horizonte de expectativa é uma mescla da sensação de uma brisa de
“primavera” em meio ao ainda pesado vento de “inverno” presente.
Para Leonardo Boff, “o importante agora não é o
homem, mas sim a figura de um papa que escolheu se chamar Francisco, que
não é apenas um nome, mas sim um projeto de Igreja. Uma Igreja pobre,
popular. Uma Igreja do Evangelho, distante do poder e próxima das
pessoas. Penso que esse papa é o novo rosto da Igreja, humilde e aberta,
que pode trazer a experiência do ‘Grande Sul’, onde vivem 70% dos
católicos”.
Segundo José Oscar Beozzo, experiente historiador da
Igreja, a presença de um papa jesuíta é uma grata ruptura na tradição
histórica porque “sempre houve um temor de ter um jesuíta, de ser ao
mesmo tempo um ‘papa branco’ e ‘papa negro’. Isso [a eleição de
Francisco] rompeu com uma tradição histórica, pro bem da Igreja”. Para
ele, a escolha do nome toca um tema fundamental na trajetória da Igreja
latino-americana: a opção pelos pobres, como também um compromisso com a
preservação ambiental.
Paulo Suess, missiólogo e assessor do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), falando em nome das pastorais sociais do
Brasil, deseja que o papa Francisco, inspirado no santo de Assis, “no
abraço dos leprosos, que hoje se encontram não só na cúria romana, mas
por toda parte do mundo, encontre sua missão profunda e conversão
permanente” e que ele, “como São Francisco, na oração diante do ícone da
cruz na Igreja de São Damião, escute a voz de Jesus, que o convida para
a reconstrução da Igreja em ruína da qual todos fazemos parte”.
Apesar desta recepção positiva, entre as mulheres a percepção e a apropriação é bem diferente.
Para a teóloga feminista Ivone Gebara, “a figura
bondosa e sem ostentação eleita pelos cardeais... escondeu o homem real
com suas numerosas contradições e temos [agora] uma percepção mais
realista de sua biografia”, ou seja, a aproximação do então cardeal
Jorge Maria Bergoglio com a ditadura militar argentina. Daí ela recupera
uma tese típica dos anos de “Guerra Fria” e também utilizada agora pelo
governo venezuelano após a morte de Hugo Chávez: o “complô”. “Foi
possível intuir que sua eleição é, sem dúvida, parte de uma geopolítica
de interesses divididos e de equilíbrio de forças no mundo católico. A
cátedra de Pedro e o Estado do Vaticano devem mover suas pedras no
xadrez mundial para favorecer as forças dos projetos políticos do norte e
dos seus aliados do sul. O sul foi de certa maneira co-optado pelo
norte. Um chefe político da Igreja, vindo do sul vai equilibrar as
pedras do xadrez mundial, bastante movimentadas nos últimos anos pelos
governos populares da América latina e pelas lutas de muitos movimentos
entre eles os movimentos feministas do continente com reivindicações que
atormentam o Vaticano.”
Na linha dos movimentos feministas que “atormentam” o Vaticano, a socióloga Lúcia Ribeiro
revelou seu mal-estar ao acompanhar toda a cobertura dada pela mídia,
por muitos artigos e entrevistas sobre a eleição de Francisco. Isto
porque “todo o processo visibiliza e deixa explícita a exclusão da
mulher da esfera de poder da Igreja Católica”. Reconhece que as mudanças
estruturais são demoradas, mas “o fundamental é a transformação que vem
das bases. É aí que as mulheres começam a ocupar um lugar fundamental,
como agentes de pastoral, coordenadoras de comunidades, assessoras,
participantes de ministérios não ordenados, ou de tantas outras formas,
como membros ativos de suas comunidades”.
Outra interpretação vem da teóloga, respeitada nos meios eclesiais e eclesiásticos no Brasil e em Roma, Maria Clara Bingemer.
Para ela, Francisco chamou a atenção por sua profunda espiritualidade
inaciana e esta poderá ajudá-lo muito no exercício do seu ministerio
petrino: “Inclinando a cabeça pediu a oração do povo por sua pessoa e
seu ministério. Foi um gesto típico de alguém formado na escola de
Inácio de Loyola, cuja maior aspiração é seguir e servir o Cristo pobre e
humilde”.
Entre os carismáticos, este mesmo gesto de Francisco proporcionou
outra interpretação e outra apropriação. Para o fundador da Comunidade
Canção Nova, Monsenhor Jonas Abib, e para Luzia Santiago,
uma das coordenadoras deste movimento, ir até a Praça de São Pedro foi
uma “obrigação” porque tinham “que estar onde a Igreja está”. Para
Monsenhor Jonas, Francisco “pede para que a Igreja seja orante, simples,
pobre, totalmente a serviço” e “estamos aqui dispostos a fazer o que o
papa nos diz a fazer”. E o que ele disse a fazer? “Que orem por ele”.
Como um dos fundadores da Renovação Carismática Católica no Brasil,
Monselhor Jonas viu naquele gesto (de baixar a cabeça) o mesmo que
acontece em muitos grupos de oração da RCC: “estava à espera da luz do
Espírito Santo. Espera que seja conduzido pelo Espírito Santo e só
faltou a Praça inteira estender a mão, para que orássemos em língua
sobre o papa, porque o Espírito Santo estará presente para governar a
barca de Pedro”.
Para este grupo, nunca houve “inverno” na Igreja. Somente “primavera” e ela continuará com a ajuda do Espírito Santo.
Por fim, o grupo dos restauradores da identidade católica. Para estes
a “primavera” trazida por Bento XVI (mais que João Paulo II) parece que
se transformará em um “outono” e temem o frio do “inverno”.
O desafio posto para este grupo vem da seguinte pergunta: Como ser
obediente a um papa que se aproxima demais dos pobres e do Concílio
Vaticano II? A resposta: recuperar a continuidade do papado.
Para Pe. Marcélo Tenorio, articulista do site
Montfort, o “Magistério de Bento XVI foi um magistério claro, preciso,
tendo como fundamento a Verdade sobre Deus, sobre a Igreja e sobre o
Homem. Preocupou-se profundamente com a questão da Sagrada Liturgia.
Condenou severamente o relativismo”. No entanto, ficou deveras surpreso e
decepcionado quando viu surgir o papa Francisco: “Não posso negar minha
surpresa ao vê-lo surgir no balcão da Basílica. Também não posso negar
que fiquei confuso diante de seus primeiros gestos, desde as vestes,
como também o uso da Estola Petrina (que indica a autoridade do Vigário
de Cristo), concluindo com sua inclinação diante do povo, além de se
colocar, várias, vezes, apenas como ‘o bispo de Roma’”. Ao final do
artigo não perde a esperança de um futuro melhor: “Os teólogos da
libertação e escravidão das consciências, os boffes heréticos e
baderneiros, os liberais, modernistas e positivitas apressadamente já se
juntam para gritar ‘Viva Francisco!’ Contra eles e pela Igreja gritamos
também nós, junto de Dom Bosco: VIVA O PAPA!”
Outro articulista do site, Alberto Zucchi,
interpreta o nome Francisco de forma positiva em vista do projeto de
Igreja que defendem: “A escolha do nome de Francisco lembrando ao Santo
de Assis tem sido apresentada pela imprensa como sendo uma menção
especial à proteção da natureza, mas a obra deste grande santo foi
sobretudo a restauração da Igreja em um tempo de grande corrupção e
heresia. Nosso Senhor pediu a São Francisco ‘restaura minha Igreja’. Sem
dúvida o Papa precisará de muitas forças para restaurar a Igreja como
pediu Nosso Senhor a São Francisco. Unamos nossas orações as do Papa. No
momento é o que devemos e o que é possível”.
Outro que também comunga deste mesmo projeto eclesiológico é o Pe. Paulo Ricardo, que possui um programa em sua home-page “Christo Nihil Praeponere” (“A nada dar mais valor que a Cristo”).
Pe. Paulo organizou um longo programa, com mais de uma hora, para
explicar aos seus fiéis seguidores os “novos” gestos do papa Francisco,
especialmente na Liturgia. Segundo ele, seria um programa com um tom de
“direção espiritual”, pois muitos estavam agitados, perplexos e com
algum temor sobre o futuro da Igreja, e de sua liturgia, após a eleição
de Francisco.
Diante de muitas questões recebidas por e-mail, entre elas sobre se
deveria ou não obedecer ao papa, Pe. Paulo com muito cuidado diz:
“Primeiro, precisamos crer, precisamos ter fé, fé na graça que ele
recebeu ao ser eleito. Precisamos dar passos espirituais em diante.
Esqueçam o passado e vamos ver o futuro que ele nos dará. Se nós estamos
condenando antes de fazer as coisas assim não haverá condições de
continuar”. E, com certa dose de constrangimento, arremata: “Vocês sabem
o quanto eu quero bem a Bento XVI e creio que ele foi sucessor de
Pedro, porque creio neste amor, nesta benevolência de filho a um pai.
Mas isto não me impede de dizer que, em muitas decisões dele, tenho
sérias dificuldades em estar de acordo e posso fazer uma lista de
decisões que não estou inicialmente de acordo, mas preciso ter uma
benevolência, tentar ver o bem que dali brota. Não posso dizer que estou
de pleno acordo com a renúncia de Bento XVI”.
Buscando tranquilizar os “espíritos” dos seus telespectadores,
conclui: “Nenhum papa é completo. Perdoemos os erros de Bento XVI e
também os futuros erros de Francisco, porque somos católicos. As pessoas
estão exasperadas na internet! Não foi um partido que mudou! O papado
continua! Bento XVI lutou para uma ‘hermenêutica da continuidade’.
Devemos rezar pela ‘hermenêutica da continuidade’ no papado de
Francisco”.
Enfim, os gestos surpreendentes de Francisco parecem que tem
provocado (vamos ver o que ainda vem pela frente) sensações, sentimentos
e desejos diferentes, divergentes e convergentes. Como disse Jesus, e
muito valorizada pelo papa João XXIII, prestemos atenção aos “sinais dos
tempos”, pois para uns seria o início de uma “nova primavera” e para
outros estaria chegando o seu fim.
IHU-Unisinos, 25-03-13.
*Sérgio
Ricardo Coutinho é mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social;
professor de “História da Igreja” no Instituto São Boaventura e de
“Formação Política e Econômica do Brasil” e de “Teoria Política” no
Centro Universitário IESB, em Brasília; membro da Associação Brasileira
de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em
História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).