Liturgia do domingo
O MANDAMENTO QUE CONDUZ À VIDA ETERNA
1ª leitura: (Dt 30,10-14) O mandamento de Deus não está fora de nosso alcance –
Deus tomou Israel seu povo, não por este ser importante, mas por amor e
fidelidade à sua promessa (Dt 7,7-8). O amor de Deus para Israel não
tem explicação, mas tem consequências: Israel deve amar a Deus com todas
as suas forças (Dt 6,4-5). Deve escutar sua voz e não afastar-se de
suas orientações; e, quando isso acontecer, deve “voltar” (30,10).
Israel diz que a Lei é difícil. Javé responde que não: não é coisa de
outro mundo (30,11-13). Está perto, ao alcance de quem ama a Deus
(30,14). * Cf. Jr 31,33; Br 3,15-29; Rm 10,6-8.
2ª leitura: (Cl 1,15-20) Hino cristológico –
Cl responde à introdução de falsas doutrinas na comunidade. Alguns
ensinam que além de Cristo se devem venerar também outros seres
transcendentes (espíritos: cf. o sincretismo brasileiro). É difícil ser
livre! Por isso, Paulo realça o lugar central exclusivo de Cristo. A
redenção por sua vida, dada até a morte, só a compreenderemos bem quando
conscientes de que ele é também o criador. Ele assume nossa vida e
nosso mundo não por fora, mas por dentro. No íntimo do ser homem, ele
vive a plenitude de ser Deus. Quando todos chegarem a essa plenitude, a
criação estará completa. * 1,15-18a cf. Sb 7,26; 8,22-23; Rm 8,29; Hb
1,3; Jo 1,1-3; Ef 1,22-23 * 1,18b-20 cf. 1Cor 15,20; Cl 2,9; Rm 5,10;
2Cor 5,18; Ef 1,10.
Evangelho: (Lc 10,25-37) O grande mandamento; a parábola do Bom Samaritano –
Lc 10,26–11,13 apresenta três exigências fundamentais do ser cristão:
1) o grande mandamento do amor a Deus e ao próximo (10,25-37): 2) o
“único necessário” (10,38-42); 3) a oração autêntica (11,1-13). –
10,25-37 responde à pergunta do caminho da vida eterna. A resposta é:
amar Deus e o próximo. Depois, o escriba pergunta quem é seu próximo. A
resposta de Jesus revoluciona suas categorias: o próximo não é um
arbitrário “objeto de caridade”; é todo homem: o estranho que me ajuda,
deus que vem até mim. * 10,25-28 cf. Mt 22,35-40; Mc 12,28-31; Dt 6,5;
Lv 19,18; 18,5.
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Um bom conselho vale mais que o ouro. Para os
teólogos deuteronomistas (séc. VIII-VI a.C.), a Lei de Moisés era um
inigualável tesouro de sabedoria, um rumo seguro para a vida, em todas
as circunstâncias. Para tê-la sempre diante dos olhos, deviam colocá-la
numa faixa, na testa (Dt 6,8; cf. Ex 13,9 etc.). Os deuteronomistas
enfrentavam um tempo de afrouxamento em Israel, mais ou menos como nós,
hoje. A quem achava as orientações de Deus, na Lei, bastante difíceis,
Dt responde: “Não é verdade. A Lei não é coisa do outro mundo, ninguém a
precisa procurar no céu ou no inferno” (1ª leitura).
“Ela está perto de ti”. De fato, mais perto do que na faixa da testa,
dificilmente poderia estar. Mas não é só naquela faixa que ela está
perto. Ela é uma palavra viva, lembrada continuamente pelos próprios
profetas, que viviam no meio do povo.
Um especialista da Lei, no tempo de Jesus,
procurava, na multidão de prescrições, saber o que devia fazer para
herdar a vida eterna, a vida da era vindoura, do Reino que Deus
estabeleceria no mundo para sempre (pois é assim que se concebia a vida
eterna) (
evangelho).
Jesus o remete à Lei ensinada por Moisés. Pergunta o que aí se
encontra. O escriba responde: amar Deus acima de tudo, e o próximo como a
si mesmo. “É isso mesmo que deves fazer”, responde Jesus. Novamente:
não é coisa do
outro mundo!
Mas o especialista da Lei é também especialista em
subterfúgios. “Quem é meu próximo?” Todos nós estamos de acordo que
devemos amar nosso próximo. Mas quem é ele? Minha velha tia rica,
prestes a ceder sua herança, ou meu empregado, com cuja família nada
tenho a ver?
Como argumentar não adiante, Jesus conta uma
história. Um homem cai em mãos de ladrões. Passa um sacerdote, mas não
tem tempo para parar, pois deve celebrar um sacrifício. Passa um
especialista das leis de pureza (um levita); este tem medo de sujar as
mãos com o sangue do homem que ficou semimorto na beira da estrada.
Passa, depois, um inimigo, um samaritano, talvez um concorrente do homem
que foi assaltado. E este cuida do homem às suas próprias custas. E
agora, Jesus pergunta não mais quem é o próximo a quem se deve fazer
obras caritativas, mas quem é o próximo do homem que foi assaltado. A
inversão da pergunta é significativa, porque o especialista da Lei é
obrigado a responder que um vil samaritano é próximo de um judeu
assaltado. Para todos nós, isso significa: eu sou próximo de quem eu
encontro no meu caminho, chamado à solidariedade com ele.
Ao analisar o texto, mostram-se detalhes mais
significativos ainda. O samaritano “comiserou-se”, “aproximou-se”; uma
linguagem que poderia ser aplicada ao próprio Deus. Deus comiserou-se do
homem e tornou-se se próximo, e salvou-o às suas próprias custas:
custou a vida de seu Filho. O próximo, “aquele que comiserou do homem”
(Lc 10,37), é Deus mesmo. “Vai e então não precisarás mais perguntar que
é teu próximo e terás a vida eterna, porque desde já estarás vivendo a
vida de Deus mesmo".
Gostamos muito de escolher nossos próximos. Está
errado. Somos próximos de quem encontramos; e este, então, é
automaticamente nosso próximo também. Talvez ele pertença a um mundo bem
diferente do nosso, mas é nosso próximo, porque nós fomos colocados
perto dele.
A 2ª leitura é
uma das obras-primas do N.T. A ideia principal é a unidade da ordem da
criação e da redenção, em Cristo. Cristo é a cabeça da redenção,
assumindo a todos na sua glória, porque ele é também a cabeça da
criação. O hino de Cl 1,15-20 expressa isso em termos que lembram
firmemente o prólogo de João e os textos que falam da Sabedoria como
hipóstase unida a Deus desde antes da criação do mundo (Pr 8; Eclo 24;
Sb 7). A figura da Sabedoria que preside à criação, identificada com
Cristo, é combinada com a imagem paulina de Cristo, cabeça da Igreja,
que é seu corpo. No pensamento bíblico, todo o corpo participa da
realidade de seu princípio vital (no caso, a cabeça). No sacrifício e na
glória de Cristo, assume-se todos o universo na reconciliação com Deus.
A “plenitude” (termo helenístico-gnóstico, indicando o “uno”, ou seja, o
ser perfeito) mora nele: a plenitude de Deus, englobando todos os seus
filhos.
AMOR AO PRÓXIMO – SOLIDARIEDADE
Os profetas de Israel teceram os mais sublimes
elogios à Lei de Deus. Aliás, o termo “lei” traduz mal o que a Bíblia
hebraica chama a torah; melhor seria traduzir por “instrução” ou “ensinamento”. Era um caminho de vida (1ª leitura).
Mesmo assim, havia quem achasse a Lei complicada e procurasse um resumo
ou pelo menos um mandamento-chave que por assim dizer resumisse a Lei. A
pergunta foi feita também a Jesus, e ele respondeu, sem hesitar: “Amar
da Deus com todas as forças e ao próximo como a si mesmo” (evangelho).
O amor ao próximo é o dever número um do cristão. S. Paulo (Gl 5,13) e
S. Tiago (Tg 2,8) resumem toda a moral cristã neste único mandamento. S.
João nos diz que é impossível amar a Deus sem amar ao irmão (1Jo 4,21).
Não se pode amar ao Pai sem amar os filhos. Mas o que é amar? E quem
são nossos próximos?
Depois de interpelar Jesus a respeito do primeiro
mandamento, o mestre da Lei pergunta quem é o próximo. Jesus não lhe dá
uma resposta direta. Conta-lhe a história do bom samaritano. Os judeus
não consideravam os samaritanos como “próximos”, como candidatos à sua
solidariedade. Eram inimigos de sua comunidade. Os membros da comunidade
judaica, a esses era preciso “amá-los como a si mesmo” (Lv 19,18), e o
mesmo valia com relação aos estrangeiros vivendo no meio dos judeus (Lv
19,35). Mas os samaritanos não. Ora, exatamente um samaritano torna-se
solidário com um judeu jogado à beira da estrada, depois que dois
ilustres “próximos” judeus, um sacerdote e um levita, deram uma volta
para não se incomodar com o compatriota assaltado...
Jesus não respondeu diretamente ao mestre da lei,
porque a questão não é descobrir quem é e quem não é próximo. Coração
generoso se torna próximo de qualquer um que precisa; a melhor maneira
de ter amigos é ser amigo. A questão também não é teórica, mas prática.
Na prática esquecemos a parábola de Jesus e fazemos como o sacerdote e o
levita: afastamo-nos do necessitado, mesmo se pertence à nossa
comunidade, e não “nos aproximamos” dele. Tornar-se próximo é ser
solidário. Somos solidários com os que vivem na margem da estrada de
nossa sociedade? Mesmo quando damos uma esmola a um coitado, não é para
nos desviarmos dele? “Vai e faze a mesma coisa”... Imitar o samaritano
exige solidariedade, assumir a vida do outro, não se livrar dele.
Torná-lo um irmão, pois este é o sentido verdadeiro da palavra
“próximo”.
Como está a solidariedade nesse tempo em que a
doutrina da competição, do lucro e do proveito ilimitado solapou o
tecido social, as relações de gratuidade entre as pessoas?
(O
Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo,
doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia
Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a
tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" –
CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A produção do Roteiro Homilético
é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório SJ, Reitor e
Professor da FAJE.)