Ser crente não é ter fé ou possuí-la. Ser crente é ser, é tornar-se.

Jesus entre os apóstolos: A fé não se dosa, vive-se.
Por Raymond Gravel*
Todo o Evangelho de Lucas é uma subida para Jerusalém, lugar do
acontecimento fundador da fé cristã: a morte-ressurreição de Cristo. Ao
longo de todo o caminho, Cristo nos ensina como viver como cristãos ou,
melhor, como ser cristãos... O evangelho de hoje, é talvez o mais duro
de todos: a fé cristã não reivindica nada. O crente não pode se orgulhar
de suas boas obras; ele é apenas um escravo inútil (tradução grega do
evangelho), e não um servo (um termo mais edulcorado). O cristão não
deve exigir nenhuma recompensa: sua única alegria é servir, porque o
crente sabe que é amado gratuitamente por aquele que serve: Deus... Esse
Deus que encontramos no outro, nos outros.
A ausência de Deus
Eu não lhes digo nenhuma novidade se digo que Deus parece estar
ausente das nossas vidas e da nossa realidade cotidiana. Diariamente,
assistimos a tragédias, a acontecimentos que causam tantos
sofrimentos... Onde está Deus em tudo isso? O que fazer? Por que não
intervém? Essas questões são frequentemente colocadas; elas são o
quinhão dos crentes, mas as respostas não são evidentes. Após a morte da
Madre Teresa, um documentário foi apresentado na TV da Rádio Canadá, no
qual é possível ver que a própria Madre Teresa duvidou de Deus, vendo a
miséria e a grande pobreza das pessoas às quais ela consagrou a sua
vida.
No evangelho de hoje, Lucas nos mostra que não era mais fácil crer no
começo do cristianismo do que hoje: “Os discípulos disseram ao Senhor:
‘Aumenta a nossa fé’” (Lc 17,5), como se a fé pudesse ser medida e
quantificada; a resposta de Jesus é desconcertante: “O Senhor respondeu:
‘Se vocês tivessem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam
dizer a esta amoreira: arranque-se daí, e plante-se no mar. E ela
obedeceria a vocês” (Lc 17,6). Há duas lições nesse versículo: 1) Basta
um pouco de fé para fazer grandes coisas; afinal, o grão de mostarda é a
menor de todas as sementes? 2) O mar é o símbolo das forças do mal e da
morte; e plantar uma árvore é fazer surgir o bem do mal, a vida da
morte... É o que há de sublime a se fazer.
Já no Antigo Testamento, no século VI a.C., vivia-se com dificuldades
esta ausência de Deus. O profeta Habacuc, na primeira leitura de hoje,
insurge-se contra Deus porque este não intervém para fazer parar a
injustiça: “Até quando, Javé, vou pedir socorro, sem que me escutes? Até
quando clamarei a ti: ‘Violência’ sem que tu me tragas a salvação? Por
que me fazes ver o crime e contemplar a injustiça? Opressão e violência
estão à minha frente; surgem processos e levantam-se rixas” (Hab 1,2-3).
Apesar das suas dúvidas, o profeta não desespera; ele continua a
exercer o seu papel de profeta, sendo uma sentinela e um vigia para seus
contemporâneos: “Vou ficar de guarda, em pé sobre a muralha; vou ficar
espiando para perceber o que Javé vai me falar, para ver como vai
responder à queixa que eu fiz” (Hab 2,1). E pelo fato de o profeta
guardar a esperança não significa que evita os acontecimentos trágicos
por vir, isto é, o Reino de Judá será invadido pelos babilônios que
levou a Assíria a estender o seu domínio sobre todo o Oriente Próximo;
por outro lado, sua confiança em Deus permitirá que atravesse esses
acontecimentos e sua esperança lhe permitirá afirmar que a injustiça não
terá a última palavra. À fé e à esperança é preciso acrescentar a
fidelidade: “Quem não é correto vai morrer, enquanto o justo viverá por
sua fidelidade” (Hab 2,4).
A fé, portanto, não se mede. Ser crente não é ter fé ou possuí-la. Ser
crente é ser, é tornar-se. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “A
pergunta dos apóstolos dá a entender que a fé é alguma coisa que podemos
ter ou perder, aumentar ou diminuir. Mas ninguém pode dizer à amoreira:
Arranque-se daí, e plante-se no mar. Porque, com efeito, ninguém pode
ter fé, porque a fé não é alguma coisa que se tem, mas é a vida que se
vive e, sobretudo, no que se torna. Ninguém pode ter Deus”.
Relação patrão/empregado ou senhor/servo
Numa leitura superficial, poderíamos nos sentir humilhados por este
relato. Em primeiro lugar, parece que Jesus nos acusa de não ter fé, e,
em seguida, tem todos os ingredientes de querer nos rebaixar mais que
serviçais. Poderíamos nos perguntar: mas onde está o Amor em tudo isso?
Jean Debruynne prossegue: “Se Jesus retoma a parábola do servo, é
justamente porque os apóstolos com seu espírito materialista continuam a
ver Jesus como o patrão e a eles como os empregados. Ao passo que para
Jesus, nós não fomos contratados para sermos empregados. Não é porque
somos bons empregados que Deus nos ama. Deus nos ama porque Ele é Amor e
isso basta. Não são os nossos méritos que contam, por mais importantes
que sejam. Conta exclusivamente o Amor com que Deus nos ama. Não devemos
imaginar que o cumprimento dos nossos deveres seja capaz de acrescentar
ao Amor de Deus. Quem poderia pretender acrescentar qualquer coisa ao
infinito? Paremos, então, de dizer: eu tenho fé, eu tenho menos ou mais
fé. A fé não se dosa, vive-se. Então vivamos!”.
O evangelho de hoje traz uma mensagem: ele nos ensina, na vida, a não
nos sentirmos indispensáveis. É mais fácil partir, quando é hora de
partir... E Deus sabe até que ponto a vida pode, às vezes, ser cruel.
Pensemos em todas essas mulheres e em todos esses homens, parentes...
que foram bons empregados e que, ao mesmo tempo, sofreram a dureza da
existência: a tragédia de Lac Mégantic, no verão passado onde numerosas
pessoas perderam a vida de uma maneira atroz; o doutor Lucille Teasdale
que morreu de Aids, querendo cuidar dos doentes de HIV, os monges
budistas assassinados por terem combatido na Argélia, a religiosa da
Providência, em Montreal, que morreu assassinada por um jovem
delinquente que ela havia ajudado a sair das drogas... e como outros
tantos! Quais foram suas recompensas? Não! A vida não é fácil para
ninguém. Afinal, nos preparemos e digamos a nós mesmos que: “Somos
servos inúteis (escravos inúteis); fizemos o que devíamos fazer” (Lc
17,10). Por outro lado, não devemos esquecer a promessa que nos é feita
após ter cumprido tudo o que devíamos fazer: “depois disso você vai
comer e beber” (Lc 17,8b). Não é o banquete do céu que nos é prometido? É
a recompensa última que nos é dada pelo Amor, por esse Deus que é Amor.
Para terminar, eu gostaria simplesmente de compartilhar com vocês esta
oração do francês Michel Hubaut, que se intitula: No Amor, nada é
obrigação, tudo é dom! “Senhor, eu não vou esconder que esta parábola
está atravessada na minha garganta! Como tu podes comparar Deus a esse
rico proprietário que se faz servir como um príncipe por seu empregado
que já trabalhou o dia inteiro e que, ao invés de ser reconhecido, o
tratas como um homem inútil e um qualquer? Perdoa-me, Senhor, mas se
Deus se parece com aquele senhor, eu prefiro ficar por minha conta!”
“(Jesus diz) Meu filho, eu te falei muito do meu Pai para que não
imagines que ele se dirige aos homens como a mercenários ou a escravos!
Mas, em cada um de vocês dorme um fariseu que acredita ter, por causa
das suas práticas religiosas, os direitos sobre Deus e sobre o futuro.
Nunca esqueça que nem suas obras nem suas virtudes vão merecer a vida e a
salvação que meu Pai vos deu por pura gratuidade. Tudo é dom. Tudo é
graça. A simplicidade do filho que sabe que recebe tudo de seu pai e de
sua mãe não é humilhação, mas alegria de ser amado e de poder amar
gratuitamente. Se eu vos lavei os pés, eu o Senhor e mestre, não foi
para vos revelar que a verdadeira grandeza do homem está em servir?”
Réflexions de Raymond Gravel
* Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette, Canadá.