O último Sínodo que reuniu bispos e
teólogos foi muito importante por várias razões, principalmente porque o
papa evocou novamente o Vaticano II e se fez perguntas que dizem
respeito aos fiéis e aos leigos. É preciso entender que começou o tempo
das contaminações entre diferentes, animados por sentimentos de
caridade. Como Jesus a entendia. A análise é de Eugenio Scalfari,
jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica.
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Foi
muito importante o Sínodo que reuniu 250 bispos vindos dos cinco
continentes junto com inúmeros teólogos e colaboradores. Importante pelo
tema que deverá ter sequências concretas por parte de todas as dioceses
católicas e refere-se a uma nova evangelização da fé da qual a Igreja
sente uma necessidade extrema; mas também é importante porque coincidiu
com o cinquentenário do Concílio Vaticano II.
Os bispos reunidos em Sínodo evocaram novamente o Concílio, mas o
próprio papa o lembrou e junto com ele os relatores do Sínodo. Foram
formuladas muitas perguntas e dadas muitas respostas; perguntas em
alguns casos deliberadamente provocadoras, e respostas em grande medida
discordantes entre si, assim como foram discordantes as interpretações
sobre a essência do Vaticano II. Algumas intervenções foram feitas não
só pelos bispos e pelos teólogos do Sínodo, mas também por teólogos e
bispos que escreveram a respeito em jornais católicos e na impressa de
informação e por leigos interessados nos temas em discussão.
Em suma, sobre o estado atual da Igreja Católica, a atenção do "povo
de Deus", da hierarquia que o guia ou pretende guiá-lo e daqueles –
crentes ou não crentes ou crentes de outras religiões – estão
interessados no debate sobre os valores da religião, foi intensa. Também
queremos aproveitar a oportunidade que a atualidade nos oferece e
expressar a nossa avaliação.
Bento XVI divulgará em breve um novo livro seu sobre a figura de
Jesus e publicamente já se fez duas perguntas: "Quem somos nós? O que é a
Igreja?" Na atual crise de valores, essas perguntas interessam a todos
muito além dos recintos das Igrejas cristãs, que, além disso,
representam a religião historicamente mais enraizada no nosso
continente, mesmo que seja justamente no Ocidente que a sua crise
enraivece e é o Ocidente o objetivo territorial e cultural da nova
evangelização, que o Sínodo lançou. Há, portanto, o suficiente delas
para despertar o nosso interesse.
* * *
O Vaticano II durou três anos. O Concílio anterior havia ocorrido 90
anos antes e tivera como resultado mais visível a proclamação da
infalibilidade do papa, além do acolhimento das indicações fornecidas
poucos anos antes pelo Sílabo. A essência daquele imponente encontro de
bispos e de teólogos foi o reforço do centralismo curial, isto é, de uma
hierarquia verticalista, depositária da política da Santa Sé e do
ensinamento católico, da interpretação das Escrituras, da formação do
clero e do seu recrutamento, dos tribunais eclesiásticos. Tudo isso
ocorria enquanto os Bersaglieri de La Marmora entravam na cidade do papa
pela brecha de Porta Pia abatendo definitivamente o poder temporal da
Igreja.
Noventa anos depois, o novo Concílio convocado por João XXIII com um
objetivo que não é excessivo definir como oposto ao anterior: relançar o
tema da pastoralidade e, ao mesmo tempo, com ele, o do confronto e o do
diálogo com o pensamento moderno: uma inversão espetacular enriquecida
por muitos outros temas confiados ao estudo de outras tantas comissões
de bispos, de teólogos, de historiadores do pensamento religioso.
Referiam-se à contribuição do laicato católico, a posição da mulher na
Igreja, o celibato dos sacerdotes, a modificação a liturgia, a poda e a
restauração da Cúria, a difusão das Escrituras entre os fiéis e,
portanto, a relação direta dos fiéis com Deus, sem mais o monopólio da
interpretação sacerdotal.
Em suma, um impulso à renovação que causou fugas para a frente e
fugas para trás dentro do Concílio e fora dele. Enquanto isso, o Papa
Roncalli morrera. Paulo VI, que o sucedeu, tentou impedir e também gerir
tanto o radicalismo dos inovadores quanto o dos tradicionalistas
radicais. Em parte, ele conseguiu isso, embora tenha se verificado o
pequeno cisma dos lefebvrianos concentrado na liturgia, na missa
celebrada não mais em latim, mas sim nas línguas faladas nos vários
países e no celebrante voltado para a plateia dos fiéis e não mais ao
tabernáculo com os fiéis às suas costas.
Não era apenas uma questão de forma, mas também de substância: a
liturgia, de fato, havia sido, por muitos séculos, a proteção bem selada
da ritualidade tradicional. A sua inovação abrira essa proteção e havia
liberado uma criatividade que, de algum modo, redescobria o papel
essencial do "povo de Deus" com relação aos sacerdotes e à hierarquia. A
pastoralidade tornava-se o elemento essencial e, também, a pregação de
Cristo e dos apóstolos, assim como as Escrituras a haviam transmitido,
nas diversas leituras que delas se podiam fazer.
Para os inovadores mais radicais, essa abertura da liturgia à
criatividade significava algo mais: o rito se tornava subordinado à
pastoralidade, isto é, ao diálogo entre as almas. E Deus perdia algumas
de suas conotações adquirindo outras. Deus perdia as conotações da
nacionalidade, perdia sobretudo o pertencimento a esta ou àquela Igreja
cristã e até mesmo a esta ou aquela religião monoteísta. O Deus
transcendente não podia ser reivindicado como católico, ou luterano, ou
mórmon, ou batista, mas também nem mesmo como judeu, nem como muçulmano.
Deus era ecumênico, o Vaticano II havia proclamado o ecumenismo e o
diálogo entre as diversas religiões como um objetivo fundamental, também
havia aberto o diálogo com os não crentes. De um lado, com finalidade
de proselitismo; de outro, como confronto de almas com relação às suas
crenças ou não crenças.
Permanecia firme a fé no Cristo encarnado em Jesus de Nazaré, no seu
sacrifício e na sua ressurreição. Permanecia o mistério trinitário,
desconhecido para as outras duas religiões monoteístas. Mas, em torno
desse pilar, havia e há um espaço muito amplo para o diálogo, o debate e
o encontro.
* * *
A rememoração do Vaticano II tornou atual um outro tema nada
secundário: a apostolicidade da Igreja Católica. Se essa palavra tem um
sentido – e certamente o tem – significa que a palavra dos Bispos
reunidos em suas sedes específicas seguramente é consultiva, mas também
pode levar a deliberações que a hierarquia deverá tornar operativas.
O Papa Ratzinger, que na época do Vaticano II foi um dos mais
fervorosos defensores dos seus conteúdos inovadores, aproveitou a
ocasião do Sínodo dos últimos dias para enfatizar que a Igreja Católica
não é e não deve ser uma Igreja conciliar; os Concílios, na visão do
papa, são apenas órgãos consultivos, assim como os Sínodos e os Bispos
individuais titulares de Dioceses. O papa sempre será muito sensível às
suas sugestões, mas não se trata, de modo algum, de órgãos
"constituintes". Mesmo que proclamem novos dogmas, esses dogmas já terão
sido deliberados pelo Vigário de Cristo, e o Concílio funcionará apenas
como "amplificador" do que já foi elaborado e deliberado por quem se
senta no trono de Pedro.
Sobre esse ponto, no entanto, o debate está aberto, e quem o pôs no
centro das suas reflexões foi Carlo Maria Martini, que faleceu
recentemente.
Martini partia de um dado surpreendente: em 2.000 anos de história do
Cristianismo católico, os Concílios foram 21, com uma média de um a
cada cem anos. Mas a média, como sempre acontece na estatística, esconde
uma realidade histórica bastante surpreendente: os 21 Concílios se
adensaram em certos períodos e em outros, de fato, não foram realizados.
Ocorreram três ou quatro na virada dos séculos III e IV; outros na
virada dos séculos X e XI; outros ainda dois séculos depois. Enfim,
houve o Concílio de Trento e depois um salto de quase 300 anos, até o
Vaticano I e, no meio disso, um Concílio-farsa desejado por Napoleão.
Uma Igreja organizada dessa forma pode se definir apostólica? Os
Bispos são os descendentes dos apóstolos no mesmo título pelo qual o
sucessor de Pedro é o vigário de Cristo na terra. Sem entrar no polêmico
assunto de se se trata de órgãos consultivos ou deliberativos, o fato é
que deveriam ser convocados (mas também podem se autoconvocar) com
maior frequência e regularidade. Uma das propostas martinianas foi um
Concílio por ocasião de cada Jubileu e, no intervalo, múltiplos Sínodos.
Uma Igreja desse tipo teria uma capacidade de ecumenismo muito maior
do que a atual e veria aumentar o peso do laicato católico, dos
oratórios em comparação com as paróquias, da liberdade religiosa tornada
mais fértil pela estreita convivência entre as várias Igrejas cristãs,
além das outras duas religiões monoteístas. Se o papa, como Bispo de
Roma, recebesse a sua proeminência desse título e não apenas do Conclave
cardinalício, e se Consistórios também assumissem um espaço consultivo
mais amplo, a Cúria se configuraria como uma espécie de Intendência e
não como a sede efetiva do poder católico.
São questões muito delicadas. Não há dúvida alguma de que a Igreja
não duraria 2.000 anos sem arquitetura centralista, mas igualmente
também não há dúvida de que essa arquitetura a envolveu em um
"temporalismo" que muitas vezes distorceu as suas funções e traiu
justamente aquela pregação evangélica e aquela pastoralidade que
deveriam representar a substância do Cristianismo. A Igreja das
Cruzadas, a Igreja corrupta e simoníaca que fez um indigno espetáculo
entre os séculos XV e XVII, a Igreja-Estado que foi o principal
obstáculo para o nascimento falho da nação italiana, a sua participação
nas guerras na Europa subordinada às vezes à Espanha e às vezes à
França, e, enfim, as fogueiras da Inquisição e das bruxas não são breves
episódios dos quais seja possível se arrepender. A instituição-Igreja
preservou a pregação e a pastoralidade por 2.000 anos, já o dissemos,
mas o seu custo foi altíssimo e continua em formas felizmente muito mais
atenuadas, mas ainda assim responsáveis pela secularização e pelo
afastamento da Europa do ícone do Cristo crucificado e depois
ressuscitado.
Se justamente a Europa se tornou terra de missão e de nova
evangelização, deve haver um motivo. A arquitetura distorcida da
religião não é apenas o único, mas certamente é um dos principais.
* * *
Enfim, o diálogo com a modernidade. Não é e não será um diálogo
fácil. A modernidade é uma época que combateu o absoluto colocando em
seu lugar o relativismo. Destronou a metafísica, ressaltou a autonomia
da consciência e o desejo do conhecimento. Confiou a ética à
responsabilidade autônoma do indivíduo.
Um diálogo é desejável, mas dificilmente poderá levar a resultados
positivos se a Igreja mantiver firmes as estacas dos princípios
inegociáveis.
O único princípio inegociável do ponto de vista da Igreja é o Cristo,
filho de Deus. Aconteceu-me, como velho secular não crente, de me
encontrar com um sacerdote como Carlo Maria Martini com sua fé
inabalável em um Cristo ressuscitado, por ele definido como "sempre
ressurgente", portanto, não um ícone imóvel, mas sim uma presença
dinâmica a ser reconquistada cotidianamente.
A esse Cristo sempre ressurgente, eu não contrapus, mas coloquei ao
lado Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José, pregador e profeta dos
fracos, dos oprimidos e dos excluídos, filho do homem.
Esse e não outro é o diálogo possível entre a modernidade e a Igreja.
O tempo das evangelizações acabou, e começou o tempo das férteis
contaminações entre diferentes, animados por sentimentos de caridade. A
caridade como Jesus a entendia quando exortava a amar o próximo como se
ama a si mesmo. Para ele, esse era o único modo de adorar o Deus de
todos e de cada um. Para nós, é a visão do mundo dos justos, uma utopia
que pode se realizar se cada um de nós quiser.
Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 25-10-2012.