A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, comentando as leituras do Domingo de Ascenção (1° de junho de 2014).
Eis o texto:
Referências bíblicas:
1ª leitura: Atos 8,5-8.14-17
2ª leitura: 1 Pedro 3,15-18
Evangelho: João 14,15-21
Muitos ficarão surpresos ao ouvir Jesus nos deixar a observância de 
mandamentos como se fosse um seu testamento. E ainda por cima, no 
plural! Podemos pensar que se trata do mandamento único, desdobrando-se 
nas prescrições de amor a Deus e ao próximo. Melhor: amar a Deus, pelo 
próximo. Em consequência, amamos os outros com o amor mesmo de Deus, que
 passa por nós. Por isso é que, sem dúvida, imediatamente após ter 
falado de mandamentos, o evangelho fala do Espírito: pois Espírito e 
amor, de fato, são praticamente sinônimos. Perto de partir, o Cristo nos
 dá o Espírito do Amor que é o mesmo que unifica o Pai e o Filho. Eis 
que, assim, somos participantes da Trindade. Da mesma forma que, em 
Cristo, temos a humanização de Deus, temos também, ao término da sua 
Páscoa, a divinização do homem. Por aí, chegamos à perfeição da nossa 
criação. E por que, para se chegar a esta perfeição, há de se passar 
pela travessia desta Páscoa sangrenta, por sofrimento e morte? Porque 
esta nossa criação encontra em seu caminho a recusa em se tornar imagem e
 semelhança do amor, recusa que é opção pelo nada. Este é o mar mortal 
para o qual nos dirigimos, mas que, por fim, o amor mais forte que a 
morte nos faz atravessar. Daí em diante, somos capazes de observar os 
«mandamentos», quer dizer, de amar a Deus sobre todas as coisas, amando o
 nosso próximo como a nós mesmos.
A nova Aliança no Espírito
O problema, que pode tornar-se um drama, é que o nosso acesso à 
humanidade perfeita, a nossa perfeita aliança com Deus, fonte do nosso 
ser, só pode realizar-se pela via da nossa liberdade. Depende de nós, 
acolher ou recusar quem nos faz existir. Como poderíamos ser «como 
Deus», que é soberanamente livre, se também não o fôssemos? Estamos 
assim, aqui, diante do bem e do mal, do que é bom e do que é mau, de uma
 boa estrada que conduz à vida e da má estrada que conduz à morte (ver 
Deuteronômio 30,15-16). Em Cristo, Deus vem tomar sobre si a maldade, o 
mal, a morte que temos escolhido. Recusar a criação à sua imagem não 
será já neutralizar Deus? Aniquilá-lo? Vã tentativa! Pois, em Deus, a 
morte vai é morrer. E estamos, assim, convidados a uma nova aliança, que
 vai mais além da morte que pusemos no mundo. Da minha parte, penso que 
esta segunda e última Aliança esteve aí desde sempre, desde as primeiras
 recusas pelas quais o homem se opôs a Deus, ao Outro, aos outros; desde
 os primeiros Caim. Isto quer dizer que o Cristo está aí, escondido, de 
algum modo subterrâneo, desde que o homem existe. Mas foi preciso 
esperar que «os tempos se cumprissem» para que fosse revelado em Jesus; 
este que para nós, é o ponto culminante do itinerário de Israel. Foi 
preciso que esta revelação acontecesse para que pudéssemos escolher 
livremente a semelhança divina, a humanidade na qual Deus se exprime.
Nós em Deus, Deus em nós
Este último discurso do Cristo está cheio de afirmações de 
interioridade recíproca: estamos em Cristo e o Cristo está em nós. Ele 
mesmo está no Pai e o Pai está nele. Finalmente, o próprio Pai vem fazer
 em nós a sua morada (João 14,23, fora da leitura). Pelo Cristo, em quem
 o Pai reside, Deus está em nós e nós estamos em Deus. Outros textos não
 vão falar desta interioridade, mas de um deslocamento necessário, de um
 caminho a ser percorrido para se chegar a ser um com o Pai. Esta 
distância é simplesmente a expressão do ato de liberdade a se cumprir 
para entrar no amor de Deus. Como sempre, tudo está dado, mas tudo deve 
ser tomado, acolhido. A questão que se põe: será que esta habitação de 
Deus em nós refere-se a nós pessoalmente? Ou ela é o fato da comunidade 
dos discípulos, da Igreja? Penso ser preciso responder: os dois. Deus 
habita em mim na medida em que me faço um só com os outros. A presença 
de Deus nos reconstrói, à imagem da Trindade. O Pai só é Deus enquanto 
gera o seu Filho e o Filho só é Deus enquanto se faz um só com o seu 
Pai. A outra maneira de dizer: somos habitados por Deus somente na 
medida em que aceitamos fazer do amor a nossa lei. Tornamo-nos "divinos"
 na medida em que nos tornamos amor, em que nos tornamos, portanto, 
plenamente humanos. Vamos encontrar tudo isto no fim do discurso, em 
17,20-23. Habitar o Cristo é ser membro do seu corpo, que é o povo unido
 no amor.
         
        
Instituto Humanitas/ Unisinos