O assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) padre
José Ernanne Pinheiro declarou no dia 17 de agosto, em sessão pública
da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, no
auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), que o assassinato
do padre Henrique, em maio de 1969, foi uma tentativa da repressão de
calar os dois segmentos mais atuantes da sociedade pernambucana naquele
momento: a Igreja Católica e o movimento estudantil. Na época, o padre
Ernanne era o vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife e
acompanhou todos os ataques e a pressão sofrida por dom Helder e seus
principais assessores e amigos.
A morte do padre Henrique era um ataque indireto a dom Helder. Além
disso, Henrique cuidava da Pastoral da Juventude e tinha muita
influência entre os estudantes, o que também incomodava. Não tenho nomes
para acusar por esse fato, mas está claro que se tratou de um crime
político”, avaliou padre Ernanne. Para o religioso, a Comissão da
Verdade cumpre uma tarefa primordial dentro do processo de registro
histórico brasileiro. “As próximas gerações precisam conhecer seus
heróis. Esperamos que essa comissão, a nacional e as demais que estão
surgindo nos outros Estados contribuam para isso”, frisou.
Em seu depoimento, padre Ernanne esclareceu que dentro da própria Igreja
Católica existiam correntes adversas e que bispos e padres colaboraram
com a repressão. “Em Pernambuco, sob o comando de dom Helder nos
posicionamos ao lado da democracia e dos excluídos”, completou.
Para o advogado Pedro Eurico, relator do caso Padre Henrique na
comissão, o depoimento reforçou o entendimento de que vários setores da
sociedade pernambucana sujaram as mãos de sangue durante a ditadura.
“Não era apenas a Polícia e as Forças Armadas que estavam na vanguarda
desse movimento. Muitos civis se engajaram na repressão e se
beneficiaram disso posteriormente”, concluiu.
O presidente da comissão, Fernando Coelho, afirmou que o depoimento
trouxe elementos importantes para a investigação. “Ficamos honrados com a
presença do padre Ernanne, pela clareza de suas ideias e pela
contextualização do momento histórico que eles nos trouxe”.
A comissão resolveu adiar, do dia 23 para dia 30 deste mês, o depoimento
do ex-major da PM de Pernambuco José Ferreira dos Anjos. Os integrantes
da comissão querem mais tempo para se preparar para ouvir o ex-militar,
considerado uma das fontes mais ricas sobre o período da ditadura no
Estado. Ferreira foi recrutado dentro da PM pelo 4º Exército e atuou
diretamente na repressão aos opositores do golpe militar de 1964. Sobre a
importância das informações guardadas pelo ex-major, o advogado
Humberto Vieira de Melo, membro da comissão, foi enfático. “Basta que
ele repita o que nos disse na sessão reservada”, ressaltou.
Leia na íntegra o depoimento do padre José Ernanne, sobre o trucidamento
do padre Antonio Henrique Pereira Neto, na Comissão da Verdade e da
Memória Dom Helder Camara, em Pernambuco.
Exmo. Sr Dr. Fernando Coelho, presidente da Comissão,
Exmo. Sr. Dr. Pedro Eurico, relator do caso Padre Henrique na Comissão,
Demais membros da Comissão da Verdade e da Memória,
Meus Senhores e minhas Senhoras,
Meu depoimento perante esta significativa Comissão é eclesial. No
período, eu exercia o cargo de Vigário Episcopal dos Leigos na
Arquidiocese de Olinda Recife e como tal fui nomeado pelo arcebispo Dom
Helder Camara, na missa de corpo presente, o sucessor do padre Henrique
para dar continuidade aos trabalhos da Pastoral de juventude. Vou tentar
organizar minha reflexão em cinco partes:
1. Quem era o Padre Henrique e como realizava o trabalho pastoral;
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período;
3. O bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique;
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife;
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes.
1. Quem era Padre Antônio Henrique Pereira Neto e seu trabalho pastoral
Nasceu no Recife aos 28 de outubro de 1940. Fez sua formação sacerdotal
em Olinda, João Pessoa, com estudos de psicologia nos Estados Unidos.
Foi ordenado sacerdote aos 25/12/1965, poucos dias após o término do
Concílio Vaticano II.
Desde os tempos de Seminário, manifestava uma vocação para trabalhar com
a juventude. Vários grupos de secundaristas e universitários recebiam
sua orientação. Henrique defendia uma proposta metodológica baseada no
seguinte princípio: o final do curso médio e o início do curso
universitário é um momento propício para ajudar os jovens a se
encaminhar para a vida.
Padre Henrique já tinha a experiência da Juventude Estudantil Católica
(JEC); mas para melhor se preparar para sua missão, participava de
encontros de pastoral de juventude a nível regional, nacional e
latino-americano. Para fundamentar cada vez mais seus pressupostos
apostólicos, dedicava bastante tempo aos estudos, sobretudo das Sagradas
Escrituras e da Liturgia. Como responsável da Pastoral da Juventude da
Arquidiocese reservava suas tardes para atender os jovens que o
procuravam para conversar e discutir temas de interesse juvenil no
próprio prédio do secretário arquidiocesano – o Juvenato Dom Vital.
Também atendia no Colégio Marista do Centro, em parceria com os irmãos
maristas no trabalho de formação dos jovens.
Solicitei ajuda para o meu depoimento a membros dos grupos acompanhados
pelo padre Henrique, perguntando: como funcionava a metodologia do grupo
e qual o papel do Padre Henrique no relacionamento com os jovens.
Recebi um depoimento esclarecedor, através de Lavínia Lins, após trocar
ideias com outros/as colegas:
“...Éramos naquela época, amigos e conhecidos, (alguns filhos de pais
que eram amigos), que se encontravam para conversar, “paquerar”, formar
banda de música (“conjunto”, na época), organizar quadrilhas no São
João. Henrique (assim gostava de ser chamado) havia aparecido por ali
porque “um dos jovens estava tendo problemas com os pais” e ele
intermediava diálogos entre eles. Os meninos então começaram a se
encontrar com ele (Henrique) com regularidade. As meninas souberam e se
interessaram.
Passamos a nos reunir às 3ª feiras à noite, para conversas (a “reunião”)
e domingos à tarde para a missa e debates. Às vezes os pais iam à
reunião e um diálogo entre gerações era mediado por ele. Com cada um de
nós Henrique estabelecia uma relação pessoal, de intimidade e
conhecimento. Chegou a aplicar alguns testes psicológicos (como o
desenho de árvore e da família) buscando aproximar-se, saber mais sobre
cada um de nós.
Sua postura era de aceitação (tão importante nesta idade) e sua
linguagem era a nossa. Era jovem também. Favorecia as relações e a
exposição sadia de cada um no grupo. Nossas vozes eram ouvidas e
repercutiam. Sentíamos pertencendo a algo que nós mesmos criávamos. Era
com este sentimento que estávamos sendo direcionados, de forma muito
inteligente, a não nos envolver com álcool e drogas e a repensar temas
que nos cercavam, como: as relações interpessoais, com outras gerações,
temas sociais como a prostituição, etc.
Ao mesmo tempo nos oferecia a Igreja Católica, não apenas na vivência
dos encontros, mas através de uma missa descontraída, onde se tocava
violão e cantava. Cada etapa era explicada. A missa agora era
“prazerosa”. Um clima de informalidade e participação, incluindo as
nossas realidades na própria celebração. Tudo era muito real e próximo,
assim como as relações que se estabeleciam com amizades que duram até
hoje, apesar da distância, namoros que evoluíram para casamentos que se
mantêm. Henrique nos mostrava uma forma nova de nos relacionar conosco
mesmos, com o outro, com o mundo”.
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período
Padre Henrique assimilou com carinho as perspectivas da Igreja do
Concílio Vaticano II, em clima de diálogo com o mundo, em clima de
ecumenismo. Era um jovem que vivia a primavera da Igreja em renovação. E
a nomeação inesperada de Dom Hélder Camara para o Recife, exatamente
nesse período, lhe era providencial e tornou-se para o nosso jovem padre
um modelo a imitar e uma corresponsabilidade a exercer.
Dois fatores significativos acentuavam a importância primordial da presença de Dom Helder no Nordeste do Brasil no momento:
- O recente golpe militar de 31 de março de 1964;
- O Concílio Vaticano II em pujante evolução na perspectiva de renovar
a Igreja e melhor servir no mundo atual (duas sessões tinham
acontecido).
Diante do regime militar, eram já conhecidas suas posições, tanto pela
atuação na cidade do Rio de Janeiro como em nível nacional - em defesa
dos direitos dos pobres, da democracia e da liberdade de expressão.
Durante o Concílio Vaticano II, exercendo, no período, a missão de
Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lhe
foi oferecida a possibilidade de ser, em breve, missionário do mundo,
como peregrino da justiça e da paz, o que, de fato, aconteceu e o
exerceu com maestria.
Construiu imediatamente um relacionamento especial de amizade durante o
Concílio com os Bispos que tinham maior sensibilidade para a
problemática do então chamado “Terceiro Mundo”. Neste contexto, surge o
famoso grupo de Bispos, provenientes de todos os Continentes, que se
encontrava para refletir sobre a missão da Igreja junto aos pobres e a
necessidade da Igreja ser sinal do Cristo pobre.
Estes fatores históricos tornavam Dom Hélder um homem de características
excepcionais para assumir o pastoreio numa região sofrida como o
Nordeste, numa cidade cheia de contrastes sociais como o Recife, num
momento político específico.
Dom Helder assumia o seu pastoreio a 12 dias do golpe militar de 1964. A
cidade do Recife era palco de numerosas prisões, exílios, por motivos
políticos. O medo invadia a população. Havia um clima de sobressalto. A
cada momento poderia haver novas prisões, novos pichamentos...
Dom Hélder, logo na mensagem de chegada, abre o coração aos seus
diocesanos, procurando desarmar os espíritos. Fez uma saudação ao povo,
ao seu povo, logo ao chegar ao Recife, permeada de liberdade
evangélica, embebida de sabor profético – anúncio e denúncia, de teor
missionário. Apresenta-se como o bispo de todos ao explicitar sua
postura pessoal e suas prioridades: ”Ninguém se escandalize quando me
vir frequentando criaturas tidas como indignas e pecadoras. Quem não é
pecador? Quem pode jogar a primeira pedra? Nosso Senhor, acusado de
andar com publicanos e almoçar com pecadores, respondeu que justamente
os doentes é que precisam de médico. Ninguém se espante me vendo com
criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita,
da situação ou da oposição, antirreformistas ou reformistas,
antirrevolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa ou de má fé.
Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo
como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades.
Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a
todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do
diálogo fraterno”.
3. O bárbaro trucidamento do Padre Antonio Henrique
Padre Antônio Henrique foi formado na escola do seu Pastor Dom Helder.
Também era fruto tanto da renovação da Igreja em pleno Concílio Vaticano
II como fruto do compromisso com o mundo estudantil, ainda em ebulição,
contra a ditadura militar. Henrique tinha consciência de que corria
risco. Estava comprometido com as causas dos estudantes universitários,
ainda muito politizados, e fazia seu trabalho pastoral em sintonia com a
dimensão profética da Arquidiocese com contínuas denúncias contra as
arbitrariedades da ditadura milita; isto o levava a viver em
vigilância.
Seu bárbaro trucidamento aconteceu no dia 27 de maio de 1969. Na tarde
do dia 26 de maio ainda recebeu vários jovens no Juvenato. Por volta das
19 horas saiu para uma reunião no bairro de Parnamirim, onde permaneceu
com os jovens acompanhados dos seus pais, até às 22,30 horas. Conforme
depoimento do grupo de Lavínia Lins já citado, após a última reunião
quando o Padre Henrique entrou num carro desconhecido:
“Nosso último encontro se deu para que os pais e os filhos pudessem
discutir tendo Henrique como intermediador. O clima era agradável e
seguro. Saí com meus pais e no Largo do Parnamirim, avistei Henrique
pela última vez. Passamos de carro e tentei acenar para ele. Sem nos
ver, entrava numa “rural” verde e branca, me parece. Dois homens
estavam fora do carro, de porta aberta, junto com ele. Outro dirigia.
Depois foi apenas a notícia”.
Na manhã seguinte, as autoridades eclesiásticas foram advertidas de que
havia um corpo num capinzal ao lado da Universidade, reconhecido como o
corpo do padre Henrique. Fora transportado para o necrotério público
onde Dom Helder logo acorreu. Outros padres, inclusive Dom Basílio
Penido, o abade do mosteiro de São Bento, médico, também se aproximaram e
aí permaneceram até a conclusão da necropsia. O sacerdote tinha sido
amarrado, arrastado, recebeu três tiros na cabeça e algumas torturas;
todos os golpes atingiram exclusivamente a cabeça e o pescoço, conforme
atesta o próprio Dom Basílio Penido.
O corpo foi velado na matriz do Espinheiro, onde aconteceram duas
celebrações – uma às 21 horas do mesmo dia e outra na manhã seguinte
antes de partir para o cemitério. Nesse contexto, foi divulgada uma nota
do Governo Colegiado da Arquidiocese, expressando a dor da
arquidiocese, o sofrimento dos jovens em plena comoção, dos familiares
perplexos.
Como a Igreja local não dispunha de meios de comunicação viáveis para
divulgar o acontecimento e a imprensa local estava sob censura, o texto
da Nota, após pronunciada, foi mimeografado e distribuída pelas
paróquias, pelos colégios e universidades, fato que fez acorrer uma
grande quantidade de pessoas para a celebração e, logo depois, para o
enterro. A Nota foi redigida e discutida com a participação de 40
padres, vários deles membros do Conselho Presbiteral.
A Nota do Governo Colegiado da Arquidiocese de Olinda e Recife :
1. Cumprimos o pesaroso dever de comunicar o bárbaro trucidamento do
padre Antônio Henrique Pereira Neto, cometido na noite anterior, 26 de
maio, nesta cidade do Recife;
2. Aos 29 anos de idade e 3 anos de sacerdote, o padre Henrique
dedicou a vida ao apostolado da juventude, trabalhando sobretudo com os
universitários. Até às 22,30 horas de ontem, segundo o testemunho de um
grupo de casais, esteve reunido, em Parnamirim, com pais e filhos, na
tentativa que lhe era tão cara, de aproximar gerações;
3. O que há de particularmente grave no presente crime, além dos
requintes de perversidade de que se reveste (a vítima foi amarrada,
golpeada no pescoço e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática
de que o atentado brutal se prende a uma série pré-estabelecida e objeto
de ameaças e avisos;
4. Houve, primeiro, ameaças escritas em Edifícios, acompanhadas por
vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de Manguinho recebeu
numerosas inscrições. A Sede do Secretariado Arquidiocesano e Regional
nordeste II foi alvejado. A residência do Arcebispo, na igreja das
Fronteiras, alvejada e pichada.
5. Vieram, depois, ameaças telefônicas, com o anúncio de que já
estavam escolhidas as próximas vítimas. A primeira foi o estudante
Cândido Pinto de Melo, quartanista de engenharia, presidente da União
dos Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula
seccionada. A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo
consistiu em exercer apostolado entre os estudantes.
6. Como cristãos, e a exemplo de Cristo e do proto-mártir Santo
Estevam, pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra
do mestre: “Eles não sabem o que fazem”.
Mas julgamo-nos no direito e no dever de erguer um clamor para que ao
menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte.
7. Que o holocausto do padre Antônio Henrique obtenha de Deus a graça
da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a conversão dos seus
algozes.
Recife, 27 de maio de 1969.
+Dom Helder, arcebispo de Olinda e Recife,
+Dom José Lamartine, Bispo Auxiliar e Vigário Geral,
Monsenhor Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal,
Monsenhor Arnaldo Cabral, Vigário Episcopal,
Mons Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal
O percurso da Igreja do Espinheiro em direção ao cemitério, sobretudo na
Avenida Caxangá, parecia um campo de guerra. O cortejo fúnebre foi
crescendo em população durante a caminhada; contou com a presença de
mais ou menos 8 mil pessoas. Também aconteceram alguns incidentes
desagradáveis. Invasão do cortejo por policiais para prender
personalidades como o deputado federal cassado Oswaldo Lima Filho
presente ao enterro e a invasão do cortejo para mandar tirar as faixas
conduzidas pelas lideranças estudantis: ”Os militares mataram Padre
Henrique”.
O enterro aconteceu no cemitério da Várzea, a pedido da família. Lá
chegando, o recinto estava totalmente cercado por forças militares, o
que impedia qualquer manifestação. Era plano dos estudantes expressarem
sua indignação juvenil diante do que eles estavam presenciando, o que
Dom Helder tinha evitado que acontecesse no interior da Igreja do
Espinheiro.
Dom Helder acompanhou com muita unção todo o cortejo e foi perspicaz em
perceber o quadro à chegada do cemitério. Procurando evitar possíveis
confrontos, subiu numa cadeira, acenou para a população com um lenço
branco em sinal de paz, rezou um Pai Nosso com a população, deu uma
benção e solicitou que todos se retirassem em silêncio. Um silêncio
piedoso, mas extremamente gritante.
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife
A missa de 7º. dia foi o momento forte para a assimilação do trágico ocorrido.
A Arquidiocese, tentando evitar fatos indesejáveis, preferiu
descentralizar a celebração; preparou um texto litúrgico unificado para
orientação de todas as paróquias e centros religiosos. Foi a ocasião
para oferecer os critérios cristãos para avaliar o trágico
acontecimento. Sua introdução dizia o seguinte: “Meus irmãos, há sete
dias precisamente Antônio Henrique, presbítero da Igreja de Deus no
Recife, foi trucidado por causa do Evangelho de Jesus Cristo. Reunidos,
hoje aqui, não são pensamentos de ódio ou de vingança, não é a sede de
mais sangue que nos movem e nos irmanam. São pensamentos de paz. Paz que
brota da fé. Fé que fala mais alto do que a perversidade dos maus. Fé,
que nos diz que padre Antonio Henrique está com Jesus, no Reino dos
vivos. Fé que nos faz apreciar a importância do seu holocausto e ouvir
os apelos de Deus a continuarmos o trabalho que padre Henrique começou.
Imploremos a misericórdia de Deus sobre todos nós, que vivemos esta
hora triste e angustiante; sobre a família do padre Henrique; sobre o
mundo que mata aqueles que lhe anunciam a verdadeira paz; sobre os
assassinos do padre Antonio Henrique”.
Na missa de 30º. dia, a homilia de Dom Helder amplia a reflexão numa
leitura religiosa do trágico acontecimento em sua relação com o momento
político. Começou a Homilia com uma pergunta: “O que diria o nosso
Padre Henrique se Deus lhe permitisse que ele mesmo pregasse a homilia
desta Missa? Que ponderações teria a fazer, que sugestões a apresentar,
falando-nos de junto de Deus, onde nossa fé espera que ele se ache?
Salvo engano, começaria repetindo a palavra de Nosso Senhor, em sua
paixão:”Não choreis sobre mim, mas sobre vós e vossos filhos” (Lc
23,28)”.
E apresenta “Apelo que chega da eternidade”:
- da eternidade, de junto de Deus, ele apela para todos os que acusam a
Igreja no Nordeste, de subversão e comunismo. Comparem o que estamos
pregando em nossa região com o Ensino Social da Igreja, ainda
recentemente expresso por Paulo VI em Genebra: estamos rigorosamente
dentro da “Populorum Progressio” e das conclusos de Medellin;
- da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Governantes que, sem
perda de tempo, partam para a reforma de base e, de modo particular,
para a reforma agrária. Mas adverte que será impossível qualquer mudança
autêntica de estrutura através de reforma conduzida de cima para baixo.
Ou o Povo participa como agente de mudança, ou não haverá promoção
humana e social;
- da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Responsáveis pela ordem
pública que, quanto antes, terminem as medidas de exceção que estão
tornando impossível o uso de processos democráticos da parte dos
cidadãos em geral, e especialmente dos estudantes, e dos trabalhadores. A
situação presente cria clima propício a arbitrariedades, e abusos, a
crimes (e não seria difícil apontar casos, de que são tristes exemplos
os esquadrões da morte). A situação presente impele os mais impacientes
para a clandestinidade, a radicalização e a violência.
Estas afirmações do nosso Arcebispo Dom Helder Camara levam-nos a
considerar que a morte do padre Henrique, por motivações
sócio-políticas, mas com convicções cristãs sólidas, não era uma exceção
na América Latina. Estávamos rodeados de densa nuvem de testemunhos de
fé (cf. carta aos Hebreus 12,1).
Nos anos das ditaduras na América Latina foram publicadas muitas
reflexões sobre o conceito de martírio, valorizando os que tombaram numa
luta pela democracia, em busca da justiça, motivados pela fé, sabendo
que poderiam pagar com a vida sua doação.
O padre jesuita Karl Rahner, considerado o grande teólogo do século XX,
fala sobre a necessidade de ampliação do conceito clássico de martírio.
Propõe que o termo martírio seja aplicado tanto para a morte suportada
pela fé como pela morte que tem sua origem num compromisso e numa luta
ativa, assumidos pela mesma fé.
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes
A Igreja local de Olinda e Recife não ficou isolada nesse sofrido
momento. Recebeu solidariedades diversas e significativas do Brasil e
do exterior. Confortadora para todos, mas sobretudo para Dom Helder, foi
a visita imediata do Secretário Geral da CNBB, Dom Aloísio
Lorscheider.
Chegaram Mensagens do Santo Padre Paulo VI, do Secretário de Estado do
Vaticano, da Presidência do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano),
da Nunciatura Apostólica e tantas outras.
O Governador do Estado da época, Sr. Nilo Coelho, nomeou uma Comissão de
Inquérito e entregou sua presidência ao Magistrado, juiz da 11ª. Vara, o
Dr. Aloísio Xavier e para desempenhar as funções de Procurador nomeou o
Dr. Rorinildo da Rocha Leão.
Logo no dia 11 de junho de 1969, o Dr. Aloísio Xavier, segundo publicou o
jornal Diário de Pernambuco, deu um excelente testemunho em favor da
conduta do sacerdote, afirmando com palavras claras e incisivas que
valeu como uma resposta a todas as insinuações veiculadas por órgãos da
imprensa.
Convidado a depor sobre o assassinato do Padre Antônio Henrique, na
Comissão Judiciária, em abril de 1975, Dom Helder solicitou a anexação
aos autos do processo sua declaração.
Ele relembra em detalhes os acontecimentos de maio de 1969, a nota do
Governo Colegiado da Arquidiocese, o caminhar da Comissão Judiciária, as
fases do processo e repete perguntas publicadas em Nota, no dia 29 de
Agosto de 1969, fazendo sérias considerações (importante de serem
explicitadas mesmo se algumas já atendidas).
Fala Dom Helder na sua declaração: “Como esquecer a coincidência de,
poucas horas antes do que ocorreu a Cândido Melo, ter sido alvejado o
Juvenato Dom Vital (local em que trabalhava o padre Antonio Henrique),
havendo os assaltantes – segundo depoimento de duas testemunhas citadas
no Relatório da Comissão Judiciária - (parte final do item V), disparado
suas armas, aos gritos de CCC? Como esquecer que, segundo o mesmo
Relatório, no mesmo item, foi o CCC quem ameaçou o Padre Henrique pelo
telefone?”
A nota continuava perguntando: “Porque não se faz uma devassa em regra
sobre este famigerado CCC? Como e quando foi organizado? Quem o financia
e quem o dirige? Quem são os seus sócios? Onde tem sua sede? Quais os
objetivos e quais os feitos desta versão do Ku-Klux-Kan? Houve interesse
efetivo em apurar a passagem do CCC pela Universidade Rural? E pela
Universidade Católica? E pelos Diretórios Acadêmicos da Escola de
Engenharia e da antiga Faculdade de Filosofia, ambas da Universidade
Federal de Pernambuco? E pela residência do Arcebispo, duas vezes
alvejada e objeto de inscrições com ameaças? E pelo Palácio de
Manguinho? Quais os resultados do Inquérito sobre o alvejamento do
Juvenato Dom Vital onde funcionam a Cúria Arquidiocesana e os
Secretariados Arquidiocesanos e do Regional da CNBB?”
Por que voltar ao caso neste momento?
A indignação ética dos brasileiros/as e, em especial, dos
pernambucanos/as, exige que fato como esse agora relatado seja
conhecido, refletido e avaliado para que nunca mais volte a acontecer no
nosso país – Nunca Mais.
Ao mesmo tempo, é sumamente importante as novas gerações conhecerem seus
verdadeiros heróis – os que deram a vida na busca de mais vida.
E numa leitura cristã, repetimos o que diziam os primeiros cristãos: “O sangue dos mártires é semente de novos Cristãos”.
Está de parabéns a Comissão da Verdade e da Memória de Pernambuco!
Recife, 16 de agosto de 2012.
Padre José Ernanne Pinheiro,
Assessor da CNBB.
Fonte: CNBB