Alguns fatos recentes revelam a autêntica teologia da libertação que todos na Igreja hoje reconhecem como legítima.
Por Carlo Molari
Há alguns meses, floresceu o interesse público pela teologia da
libertação. Nos dias 7 a 11 de outubro de 2012, em São Leopoldo, na
universidade dos padres jesuítas no Brasil, ocorreu um Congresso
Continental de Teologia. Estavam presentes os principais teólogos
latino-americanos. Faltava apenas Gustavo Gutiérrez, que se encontrava
nos Estados Unidos para uma série de palestras na Universidade Notre
Dame de Washington. Mas ele discursou, saudado por um caloroso aplauso,
em uma vídeo-conferência sobre o perene valor da teologia que tem como
eixo central a opção preferencial pelos pobres: "Hoje a melhor resposta
que podemos dar é a solidariedade com os pobres".
Na mesma ocasião, Leonardo Boff desenvolveu o aspecto ecológico (a
"pobreza crucificada da Mãe Terra"), enquanto outros retomaram o tema do
diálogo inter-religioso.
No mesmo mês, na Itália, foi apresentada uma nova edição do livro
Dialogo della Liberazione, de Arturo Paoli, pertencente à comunidade de
Spello dos Irmãozinhos do Evangelho, mas residente, de fato, em San
Martino di Vignale, onde fundou o Centro Charles de Foucauld nas colinas
com vista a Lucca, sua diocese de origem. A edição original da obra,
que o padre Arturo Paoli escreveu na Argentina entre os lenhadores da
floresta de Fortin Olmos, em 1969, foi publicada no mesmo ano pela
editora Morcelliana, da Bréscia: o livro teve sete edições e foi
traduzido em quatro línguas (espanhol, português, inglês, francês). A
nova edição contém, além do prefácio histórico de Sergio Soave, dois
testemunhos preciosos: o do uruguaio Julio Saquero, ex-irmãozinho que
viveu com Paoli na Argentina entre os anos 1960 e 1970, e o de Miguel
Ángel Sevilla, "Miquicho", o interlocutor argentino de Arturo Paoli no
Dialogo.
Nas últimas semanas, por fim, os principais jornais italianos relataram a
notícia de uma ampla resenha escrita no L´Osservatore Romano pelo
diretor das Edizioni Messaggero de Pádua sobre a tradução italiana de um
livro que reúne três longos artigos do padre dominicano Gustavo
Gutiérrez e quatro capítulos do atual prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, o cardeal Gerhard Ludwig Müller.
O livro é intitulado: Dalla parte dei Poveri. Teologia della
liberazione, teologia della Chiesa (Edizioni Messaggero-Emi,
Pádua-Bolonha, 2013). O livro foi publicado na Alemanha em 2004, por
iniciativa do cardeal Müller, quando ele ainda era simples bispo de
Regensburg. Ele se voltou para o seu amigo teólogo Gustavo Gutiérrez,
residente em Lima, para lhe propor a coleção de alguns dos seus escritos
sobre a teologia da libertação, que apareceram em revistas
latino-americanas nos anos 1994 a 1996, e para acrescentar quatro
estudos do próprio prelado.
De fato, em ambos os lados foram ilustradas as teses principais da
teologia de Gustavo Gutiérrez, sacerdote da diocese de Lima, que desde
2001 entrou para a Ordem Dominicana.
A pobreza
O tema principal da reflexão de Gustavo Gutiérrez é o sentido da pobreza
evangélica, "um problema complexo e poliédrico" (p. 60). De fato, há
uma pobreza real ou material injusta e contrária à vontade de Deus, há
uma pobreza espiritual, escolhida livremente para mostrar o valor
ilusório das coisas e a centralidade de Deus ("infância espiritual") e
há uma escolha solidária de proximidade aos pobres para ajudá-los a sair
da sua condição de marginalização e de insignificância.
"Medellín captou com autoridade essa distinção (Medellín, Pobreza n. 4),
que adquiriu assim um enorme valor" (p. 118). A reflexão crítica sobre a
experiência dessa solidariedade vivida na fé constitui, justamente, a
teologia da libertação resumida na fórmula "opção preferencial pelos
pobres".
A fórmula "nascida da experiência e da prática das comunidades cristãs
latino-americanas, se expressou inicialmente em Medellin e foi acolhida
explicitamente em Puebla" (p. 13). O padre Gutiérrez sublinha que "tal
abordagem faz parte hoje (...) do magistério universal da Igreja" (p.
13) e, de fato, já foi antecipada por João XXIII no discurso de 11 de
setembro de 1962, quando ele desejava que o Concílio Vaticano II
apresentasse "a Igreja de todos e, principalmente, a Igreja dos pobres".
O padre Gutiérrez nota que essa mensagem foi "ouvida e aprofundada ainda
mais na América Latina e no Caribe" (p. 55), de modo que a reflexão
desenvolvida a partir de então constitui hoje "o que há de mais
essencial na contribuição da vida da Igreja na América Latina e da
teologia da libertação à Igreja universal" (p. 58).
Ele está convencido de que "a teologia da libertação nasceu do desafio
que representa para a fé a enorme e desumana pobreza existente na
América Latina e no Caribe. Por isso, os seus primeiros esboços foram
uma reflexão sobre o significado bíblico dos diferentes tipos de pobreza
e uma avaliação, à luz da fé, do compromisso de evangelização dos
cristãos e de toda a Igreja com os pobres" (pp. 134s., capítulo 5, Dove
dormiranno i poveri?, pp 111-174).
A pobreza material não é apenas a falta dos bens necessários a uma
existência digna dos filhos de Deus, mas é também a condição pela qual
um sujeito "é o insignificante, aquele que é considerado uma não pessoa,
alguém a quem não é reconhecida a plenitude dos direitos como ser
humano" (p. 60).
Outra perspectiva é a descoberta do "pobre como ´o outro´ de uma
sociedade que se constrói às margens ou contra os seus direitos mais
elementares, alheia à sua vida e aos seus valores. Assim, a história
escrita a partir desse ´outro´ (partindo, por exemplo, da mulher) se
transforma em uma história outra. No entanto, reler a história poderia
parecer um exercício puramente intelectual, se não entendermos que
também significa refazê-la" (pp. 60-61).
"Esse universo em evolução, que em grande parte subverte e transforma os
valores das culturas tradicionais, condiciona a experiência vivida da
fé e o anúncio do Reino; é, portanto, um ponto de partida histórico para
uma reflexão teológica" (p. 63).
Por isso, "é necessário vencer a obstinação de ver na pobreza no mundo
atual somente um problema social, o que significaria ignorar o que esse
doloroso sinal dos tempos pode nos dizer" (p. 59). Reconhecê-lo é a
principal tarefa do teólogo como discípulo de teologia de Jesus. "A
teologia como reflexão sobre a práxis (...) constitui justamente o
coração do discipulado. As suas duas grandes e interligadas dimensões, a
oração e o compromisso histórico, formam aquilo que no Evangelho de
Mateus se chama de fazer ´a vontade do Pai´ em oposição a um simples
dizer ´Senhor, Senhor´ (7, 21)" (pp 68-69).
Os teólogos devem conhecer bem e ter em mente "o terreno comum a partir
do qual partem e no qual escorrem as nossas linguagens e as nossas
reflexões: o dos insignificantes, o da sua libertação integral e o da
boa notícia de Jesus dirigida preferencialmente a todos eles" (p. 63). A
essa complexa situação correspondem "três níveis no conceito de
libertação": libertação social, política, econômica, cultural;
libertação da pessoa com relação aos seus diversos aspectos; libertação
do pecado (...) É aquilo que, na Teologia da Libertação, é chamado de
libertação total em Cristo. Puebla adverte que "a unidade indissolúvel
desses três planos" implica que "o mistério da morte e ressurreição de
Jesus Cristo é deve ser vivido nos três planos (...) sem tornar
exclusivo nenhum deles" (Puebla n . 326) (pp. 10 -11).
Segundo Gutiérrez, "a pergunta fontal – ´como dizer ao pobre, ao último
da sociedade que Deus o ama?´ – demonstrou a sua própria fecundidade na
ação pastoral da Igreja e no caminho teológico empreendido para
responder a ele" (p. 9). Ela implica o conhecimento rigoroso da
realidade e das causas da pobreza injusta. Esses dados tornam mais
eficaz a nossa opção pastoral, possibilitam uma reflexão teológica
aprofundada e também despertam a "espiritualidade, isto é, o seguimento
de Jesus Cristo que é ´o caminho, a verdade e a vida´ (Jo 14, 6 )" (p.
17).
"No próprio coração da opção preferencial pelos pobres, há um elemento
espiritual da experiência do amor gratuito de Deus. A rejeição da
injustiça e da opressão que ela implica está ancorada na nossa fé no
Deus da vida" (p. 69).
A preocupação do cardeal Gerhard Ludwig Müller é diferente, mas
complementar. Ele pretende mostrar que a teologia da libertação é
verdadeira teologia e que, se ela recorre às ciências sociais, é apenas
para melhor responder às próprias exigências de esclarecer "o novo, o
original ponto de partida da teologia da libertação" (p.77).
"A sua pergunta de fundo é orientada teologicamente e soa assim: como se
pode falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, dos
sacramentos, da graça e da vida eterna diante da pobreza, da exploração e
da opressão dos seres humanos no terceiro mundo e tendo em conta o fato
de que nós considerarmos o homem como um ser criado à imagem de Deus,
para o qual Cristo morreu, para que ele experimente Deus como salvação e
vida em todos os âmbitos da sua existência?" (p. 79).
Essa é a autêntica teologia da libertação que todos na Igreja hoje reconhecem como legítima.
Revista Rocca, 01-10-2013.
*Carlo Molari é teólogo, sacerdote e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma.