segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Sem palavras


O que se pode dizer de um amigo querido que se foi repentina e inesperadamente?  De um amigo que era também um mestre.  E um irmão.  E um pai. Dizer o quê?  Que era brilhante?  Inspirado? Agudo? Encantador?  Trabalhador incansável? Disponivel?

Tudo isso se pode dizer e muito mais.  Mas a verdade é que se fica sem palavras quando a notícia chega e aquele a quem amamos não mais pode ouvir-nos.  E a cabeça gira, e o ouvido zumbe e a ficha não cai.  E não se acredita.  Mas de repente começam a chegar comentários de outros e outras que também o amavam.  E se conclui tristemente que é verdade.

Assim me senti quando soube da morte do Pe. João Batista Libanio, em Curitiba, enquanto pregava um retiro para as irmãs de Sion.  Não pude ir ao velório, ao enterro, nada.  Só pude chorar aqui onde estou, longe dele e da comunidade de seus amigos, que só agora se constatou quanto é grande, imensa, incontável.

Libanio foi meu primeiro professor de Teologia.  E nunca deixaram de habitar minha mente e coração aquelas aulas dinâmicas, movimentadas, instigantes, às quais se comparecia com ânsia e se saía com gosto de “quero mais”. Nunca mais deixou de acompanhar-me em toda a minha vida de estudante.  E foi o responsável pelo doutorado que acabei fazendo na Universidade Gregoriana, em Roma. Eu não acreditava na possibilidade: uma mulher leiga, mãe de família?  Ele escreveu a todos os bispos e provinciais havidos e por haver, e meses depois lá ia eu com o coração na mão e muita esperança.

Quando ainda era sua aluna, convidou-me a escrever um livro em coautoria.  Não acreditei no convite.  O famoso professor compartilhando um livro com uma aluna de graduação?  Só Deus sabe o quanto aprendi com aquela parceria. Respeitoso, afável e alegre, ele estimulava e criticava de maneira sempre construtiva e positiva.

Após o doutorado, compartilhamos muitos trabalhos: assessoria do Intereclesial das Comunidades de Base, grupo de reflexão, cursos.  E quando havia encontro, aconteciam as conversas intermináveis, risos e até gargalhadas, pois era irresistível sua verve e incomparável seu humor.

Libanio querido, sempre achei que você e a morte eram incompatíveis.  Com seus mais de 80 anos você era magrinho, ágil,  esperto, agitado.  Corria todos os dias, nadava 1.000 metros sem se cansar, dirigia reuniões.  Por que falhou esse coração, meu Deus, quando ainda havia tanto para dar, partilhar?  Tanta terra a fecundar, tanto terreno a frutificar?

Creio que a resposta é o amor incomensurável que enchia seu coração.  Um dia ele foi exigido mais do que era possível e resolveu parar e descansar.  E aí você nos deixou para repousar nos braços desse Deus que tanto amou e por quem foi tão amado.  A Ele você consagrou sua vida e toda ela foi um trabalho ininterrupto que abriu o conhecimento desse mistério de amor e salvação a tantos e a tantas.

Você foi o primeiro de quem ouvi falar em Teologia da Libertação, em opção preferencial pelos pobres, em tudo aquilo que enchia nossos corações de fogo e de desejo enquanto estudávamos Teologia. E eu o segui ao longo dessa longa e rica vida, sempre fiel a essa opção e a essa Teologia. Vai ser difícil a comunidade teológica brasileira viver sem você.  Sem sua mente clara, sua presença sábia, sua crítica pertinente no momento certo, sua inspirada criatividade.

Por outro lado você deixa atrás de si gerações que beberam da sua sabedoria e seus ensinamentos.  Jovens que, como eu, cresceram em boa parte porque sentiam que o mestre acreditava neles e nelas.  E que, portanto, valia a pena investir e andar para frente.  O bem que você fez a todos nós, mestre querido, só agora, na luz que não tem ocaso, deve lhe estar sendo plenamente revelado.

Com você aprendi muitas coisas.  E acho que ainda vou aprender, enquanto rumine e revisite tudo aquilo que ficou gravado nos livros e, sobretudo, no coração. Mas creio que o mais importante é que, mais do que com você, em você, tive a revelação do que é a alegria como dom do Espírito Santo.

Você, caro mestre, foi certamente a pessoa mais alegre que conheci.  E não me refiro apenas àquela alegria que é feita de bom humor, de piadas, de comentários lúcidos e apropriados.  Mais do que isso: você encarnava aquela alegria de alguém feliz em sua pele e em sua vocação.  A alegria gratuita, por nada provocada e sem causa aparente: alegria com a alegria do outro, com seu sucesso, com sua realização e crescimento. Alegria porque o Reino de Deus crescia, os humildes se apropriavam dele e os pobres ouviam a Boa Nova.

O que peço hoje, enquanto o coração dói com sua ausência, é ser contagiada com essa alegria que Ele foi tão pródigo em lhe dar.  Esta é a alegria que atravessa triunfante e vitoriosa as tristezas e tribulações da vida, pois vem da única fonte que jamais estanca: o coração de Deus.  Você derramou essa alegria por onde passou, querido amigo, irmão e mestre.   Agora somos responsáveis e guardiães desse dom que fará o amor avançar e tomar conta do mundo.  Obrigada, caríssimo.  E interceda sempre por nós. São essas as únicas palavras que finalmente encontrei para dizer diante do mistério de sua morte.  Mas como doem! O consolo é que é dor de parto, dor pascal.  Amém.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

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