sábado, 22 de fevereiro de 2014

Um convite ao Amor mais que perfeito

O que Mateus nos propõe é um Amor ilimitado. Esse amor nos faz ser semelhantes a Deus.
Por Raymond Gravel*
No domingo passado, nós vimos a primeira sequência do Sermão da Montanha com quatro leis de Moisés reinterpretadas e atualizadas pelo Jesus do evangelho de Mateus. Hoje, duas outras leis são retomadas pelo evangelista Mateus. Com o mesmo gênero literário da semana passada, a hipérbole, Mateus nos convida a ultrapassar a letra da lei para atingir o espírito. Ele termina o evangelho de hoje com esta frase um pouco surpreendente: "Vocês, portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu" (Mt 5,48). Ser perfeito, como Deus, quer dizer exatamente o quê? A partir das leituras que nos são propostas, procuramos jogar luz sobre esta perfeição que nos é pedida...

Devemos nos lembrar do começo desse discurso de Jesus na montanha, onde ele dizia que não veio para abolir a Lei, mas para dar-lhe pleno cumprimento (Mt 5,17). E cumprir, significava: colocar a lei a serviço da pessoa humana a fim de proteger sua dignidade, sua integridade e sua liberdade. Para cumprir a lei, é preciso, portanto, passar da letra ao espírito; caso contrário, nossa justiça se parecerá com aquela dos escribas e dos fariseus que Mateus denuncia com força (Mt 5,20).

Na fé cristã, a pessoa humana é tão importante que ela é sagrada. Na segunda leitura de hoje, na primeira Carta aos Coríntios, São Paulo afirma solenemente que o ser humano é Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita nele (1 Cor 3,16). É por isso que, quando se aplica uma lei, não é a lei que é primeira, mas a pessoa humana que ela deve proteger... E isso é sagrado!

Retomemos, pois, as duas últimas leis a que Mateus se refere e vejamos como seu cumprimento se poderia dar hoje...

1. “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’” (Mt 5,38). Esta lei do talião, aplicada ainda hoje em algumas culturas, consiste em limitar a vingança e em medir a justa compensação: um olho e não os dois olhos por um; um dente e não a mandíbula por um dente. A vingança foi limitada, mas ela continua aí. É por isso que o Cristo de Mateus vem para colocar tudo de pernas para o ar: “Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês” (Mt 5,39a). E como se aplica esta não vingança no tempo de Mateus? Pela hipérbole, isto é, pela exageração, pela ampliação, pela desmedida, para mostrar a importância de não se vingar, porque a vingança não traz nenhuma solução, a não ser uma espécie de satisfação egoísta e passageira. Um sábio já disse: "Vingar-se faz bem na hora; perdoar faz bem sempre".

Os exemplos que Mateus dá podem ser exagerados, desmedidos, mas eles ilustram muito bem que é possível desarmar qualquer um que utiliza a violência física ou psicológica: “Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto!” (Mt 5,40), e “Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele” (Mt 5,41). Esta maneira de agir pode desarmar qualquer um...

Mas como aplicar isso hoje? Ser cristão não é ser cretino. Naturalmente, devemos trabalhar para restaurar a justiça para todos, mas podemos fazê-lo sem nos vingar do mal que sofremos... A vingança não traz nada de positivo, a não ser a violência. Temos inúmeros exemplos de conflitos no mundo que são intermináveis e que são fruto da vingança: jogam-se bombas uns sobre os outros e é sempre em vingança contra o outro... Como isso pode terminar?

2. "Vocês ouviram o que foi dito: ´Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo´" (Mt 5,43). A expressão "odeie o seu inimigo" não se encontra na Bíblia. Por outro lado, para um bom judeu praticante, o próximo é aquele que partilha a mesma fé e a mesma cultura. O inimigo é o estrangeiro, o pagão, o outro que é diferente. Não foi dito para odiá-lo, mas era proibido falar com ele, porque era impuro, e era proibido aproximar-se dele, de tocá-lo. O Cristo de Mateus diz: “Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês” (Mt 5,44). Se nós dizemos que somos filhos e filhas de Deus, como podemos separar as pessoas em próximo e inimigo, como fazia a tradição judaica da época? O sol brilha sobre todos, bons e maus, e a chuva cai sobre justos e injustos (Mt 5,45).

E Mateus vai ainda mais longe: se nós amamos a quem nos ama, que novidade há nisso? Como cristãos, é preciso fazer mais do que isso! Caso contrário, o que nos distingue dos outros? Se saudamos apenas os nossos irmãos, nossos semelhantes, nossos próximos, aqueles que pensam como nós... os pagãos também fazem isso! O que há de tão extraordinário nisso? No fundo, o que Mateus nos propõe é um Amor mais que perfeito: um amor em toda a sua gratuidade, sem discriminação, sem dominação, ilimitado. Este amor nos faz ser semelhantes a Deus...

Se atualizarmos isso para hoje, como isso se traduz em nossas vidas de crentes? Amar o outro, o estrangeiro, o diferente de nós, quando está longe, é fácil... Mas, quando está do nosso lado, próximo de nós, isso é um pouco mais difícil... É isso que nos é pedido. Isso diz algo sobre a perfeição à qual somos convidados para sermos semelhantes a Deus. São Paulo não diz que nós pertencemos a Cristo e que Cristo pertence a Deus? Se isto é verdade, a vida pode nos despojar completamente... mas, mesmo despojados, conservaremos a nossa dignidade de filhas e filhos de Deus.

Em uma nota sobre o evangelho de hoje, o francês Gérard Bessière escreve: "Manto, túnica, roupas, roupas íntimas... em suma, é preciso aceitar desnudar-se e ficar nu! Pensamos em tantas mulheres e homens que tiveram que abandonar inclusive suas roupas ao entrarem nos campos onde queriam destruir seus corpos e suas almas. É necessário empurrar a não violência até semelhante extremidade? Não seria isso fazer o jogo dos violentos e renunciar a qualquer justiça? Alguns denunciaram nessas palavras uma moral de escravos. A dignidade da pessoa humana não exige que seja respeitada em seus direitos fundamentais? Jesus pratica com frequência o paradoxo que choca, revela, faz reagir e refletir! Ele quer levar os homens muito mais longe do que as aparências, as reputações, as situações. Para além de tudo o que permite ao homem se vestir, proteger e esconder, às vezes, ele nos leva à nossa nudez primeira, a esse lugar deserto onde estamos sempre em vias de nascer e de escolher a nossa vida, de recusar ou de acolher em nós a humanidade dos outros, que também é a nossa. Mas as palavras de Jesus eram apenas fórmulas de choque: numa Sexta-feira, soldados dividiram entre si as roupas e tiraram sorte sobre a túnica, após tê-lo pregado numa cruz..."
Réflexions de Raymond Gravel
*Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette. O texto é baseado nas leituras do 7º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico (23 de fevereiro de 2014). A tradução é de André Langer.

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