quarta-feira, 28 de maio de 2014

A estratégia de Francisco


Desde o começo do pontificado, o papa elegeu a estratégia dos gestos para abrir debates.
Por Washington Uranga*
Desde o começo de seu pontificado, Francisco elegeu a estratégia dos gestos para estabelecer temas, abrir debates, impulsionar perspectivas. E esses gestos são logo seguidos de iniciativas políticas com sentido estratégico. Os exemplos são abundantes. Disse que quer “uma Igreja pobre e dos pobres”. Sua primeira viagem foi a Lampedusa, para encontrar-se com os migrantes ilegais que brigam para entrar na Europa. Prega a austeridade, contudo também mostra austeridade pessoal em meio a um contexto vaticano que contradiz este olhar. Reafirma a ideia de colegialidade da Igreja e cria uma comissão de cardeais que, ultrapassando a formalidade da normativa eclesiástica, tem como atribuição pensar outras formas de governo da Igreja. “Façam bagunça”, foi o que disse aos jovens no Rio e ele mesmo “faz bagunça” quando deixa transcender mensagens pastorais que não se ajustam exatamente nas rígidas normas da instituição católica.

Pode-se concordar ou discordar com o papa Bergoglio, estar em acordo ou não com sua perspectiva sobre o mundo e a Igreja. Porém é inquestionável que Francisco é um eclesiástico que sabe lidar com os gestos e também o com os tempos e a arte da política, que tem objetivos e que está disposto a cumpri-los passo a passo, com uma disciplina estratégica, com habilidade política (que também inclui o fator surpresa) e o sentido da oportunidade.

A viagem a Terra Santa não escapa desta lógica. A imagem de Francisco com a cabeça apoiada sobre o muro que cerca Belém, no mesmo lugar que os palestinos reivindicam com pichações sua ânsia por liberdade, não pode ser pensado, de maneira alguma, como resultado de um improviso ou uma inspiração do momento. Não estava no itinerário oficial, mas pode-se ter certeza, sem medo de errar, que Bergoglio imaginou esse instante, refletiu sobre ele e o executou com perfeição.

Talvez até sonhou (e programou) a reza conjunta e o quadro resultante frente ao Muro das Lamentações ao lado de seus amigos argentinos, o rabino Abraham Skorka e o muçulmano Omar Abboud. A exclamação com que os três selaram esse momento (“Nós fizemos!”) fala, nitidamente, do propósito que os levou até ali.

Toda a viagem esteve marcada por alguns objetivos chaves: instalar o tema da paz com justiça, sustentado pelo diálogo com a diferença, e consolidar o papel que as grandes religiões podem ter para a paz no mundo, em todos os cenários. Mesmo nos mais conflituosos e onde tudo parece ser difícil. Para isso utilizou todas as suas habilidades para dizer e fixar posição, sem ferir os sentimentos de interlocutores sensibilizados. Nesse cenário, Francisco também escolheu uma estratégia discursiva: no lugar de julgar, repreender e advertir, optou por sempre pregar a força do diálogo e centrar, nesta habilidade dos homens, a possibilidade de superar as diferenças.

Cinquenta anos atrás, Paulo VI chegou a Terra Santa para fomentar o diálogo entre as religiões. Francisco está covencido de que no mundo atual as grandes religiões têm que ter um papel fundamental para construir e consolidar a paz. A viagem a Terra Santa se inscreve neste propósito. Objetivo que o Papa também traduziu em ações concretas como sua participação ativa no caso da Síria e agora na proposta para comprometer aos presidentes palestino e israelense, Mahmud Abbas e Shimon Peres, para irem ao Vaticano para “rezarem juntos”.

Francisco também utiliza o cenário midiático para desenvolver sua estratégia. Gera gestos que comprometem a terceiros, mesmo sabendo que ele mesmo também se compromete. Está convencido de que colaborar com a paz no mundo pode ser uma contribuição que a Igreja Católica e ele, como Papa, podem fazer hoje para a humanidade. É também o caminho para aumentar (resgatar? Recuperar?) o prestígio da Igreja e crescer o seu próprio, consolidando-se como figura e referência no cenário internacional. Para isso continuará afirmando que a busca da paz deve estar sobre “as diferenças de ideias, língua, cultura ou religião”. Este é seu lema e haverá novos gestos e mais feitos nessa mesma linha.
Página/12, 27-05-2014.

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