sábado, 14 de março de 2015

Erguer os olhos para o crucificado


Basta erguer os olhos para Jesus, para que dele recebamos a graça do perdão.
Enquanto os mitos clássicos veem como magnífico o herói vencedor, a Bíblia nos força a voltar o olhar para as vítimas, para todos os que temos sacrificado na construção da nossa prosperidade. O pequeno, o pobre, a ovelha perdida. Em Mateus 23,29-35, Jesus diz aos notáveis de Israel que, agora, ao levarem o Filho à morte, irão completar a obra dos seus pais, os quais haviam assassinado os profetas. O Cristo recapitula todas as nossas vítimas, as antigas, as atuais e as futuras, e é para Ele que devemos voltar os nossos olhos: "olhar para".
Este tema retorna diversas vezes em João. Vamos encontrá-lo no começo do evangelho de hoje, onde a expressão "olhar para", que encontramos em 19,37 a propósito de Jesus traspassado na cruz, é substituída por "crer em". Em 12,32 lemos: "e, quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim", todos os olhares. Assim, pois, “olhar para”, “crer”, “ceder à atração divina” são fórmulas equivalentes.
Para João, a crucifixão de Jesus é ao mesmo tempo suplício e elevação. O crucificado torna-se o ponto de mira, o centro da atenção universal. Como pano de fundo, temos Isaías 52,13 - 53,12, onde vemos o Servo levantar-se, erguer-se, ser exaltado ao extremo. Mas o caminho desta exaltação é paradoxal, porque coincide com um caminho de cruz.

O percurso do servo

Isaías põe em cena um grupo ou uma multidão de espectadores que, em 53,3, torna-se um "nós", todos nós: vocês, eu, todos os homens e mulheres. O que estão olhando? Um homem "que não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar"; um homem desprezado, abandonado, rejeitado e punido por Deus. E eis que no versículo 5 os espectadores se dão conta de que estão em vias de contemplar a sua própria decadência, ao verem que este homem foi «trespassado (ver João 19,37) por causa das nossas transgressões".
Os nossos sofrimentos e as nossas dores, ele as toma para si e, por suas chagas, é que somos curados. Jesus na cruz é a imagem do nosso mal. Exatamente a maldade dos homens o fez morrer. E vamos encontrar aqui a imagem da serpente de bronze. Em êxodo pelo deserto, os Hebreus estavam sendo dizimados por "serpentes tortuosas", segundo a expressão de Sabedoria 16,5-8, que comenta Números 21,4-9. Estas serpentes são a materialização da perversidade do povo, da sua desconfiança para com o amor de Deus (versículos 4 e 5).
Pregada numa haste de madeira, a serpente de bronze é a figura deste mal. Para curar, é preciso aceitar não fechar os olhos, olhar de frente o seu próprio mal. Em Zacarias 12,10, "Aquele que transpassaram" (pregado num madeiro), torna-se o próprio Deus. A crucifixão do Cristo é a tentativa de levar Deus à morte. Assim é que aquele que traspassaram torna-se a imagem do nosso mal. Jesus se fez serpente e, voltando os olhos para ele, estamos frente ao mal que aceitamos olhar. Na certeza de que o tenha tomado para si e de que nos liberte.

O julgamento

A sequência do texto evangélico nos diz a mesma coisa, mas com outra linguagem: a linguagem do julgamento. Quem olhar para a serpente de bronze não morrerá mais. "Assim, é necessário que o Filho do homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna".
O Cristo levantado da terra, na cruz: este é o julgamento do mundo. Por quê? Como? Pelo fato de este espetáculo do Deus crucificado, esta demonstração de que o amor é a nossa luz e a nossa verdade, operar uma divisão: há os que aceitam «olhar» e há os que desviam os olhos. Quando ouvimos falar em «juízo final», não esqueçamos que o Pai nos deu o seu Filho não para nos julgar, mas para nos salvar. E, então, produz-se um segundo julgamento, ou o julgamento se amplia. E, desta vez, são os homens que julgam: «preferiram as trevas à luz", diz o nosso texto.
Preferir, escolher, decidir-se é exatamente "julgar". Podemos crer que, um dia, tudo o que existe em nós de verdadeiro e de falso, verdade e mentira, aparecerá em plena luz. Mas Paulo, em Efésios 5,11-14, escreve que tudo o que vem à luz, inclusive o que há de pior, torna-se luz. Somente então, tomando consciência do nosso mal, é que, na verdade, poderemos olhar para aquele a quem traspassamos, cada vez que o excluímos das nossas vidas. Mas, então, o julgamento se tornará absolvição, reabilitação.
Croire
*Marcel Domergue é sacerdote jesuíta. O texto é baseado nas leituras do 4º Domingo da Quaresma - Ano B (15 de março de 2015). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.

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