sexta-feira, 4 de outubro de 2013

É preciso pouca fé para fazer grandes coisas

Ser crente não é ter fé ou possuí-la. Ser crente é ser, é tornar-se.

Jesus entre os apóstolos: A fé não se dosa, vive-se.
Por Raymond Gravel*
Todo o Evangelho de Lucas é uma subida para Jerusalém, lugar do acontecimento fundador da fé cristã: a morte-ressurreição de Cristo. Ao longo de todo o caminho, Cristo nos ensina como viver como cristãos ou, melhor, como ser cristãos... O evangelho de hoje, é talvez o mais duro de todos: a fé cristã não reivindica nada. O crente não pode se orgulhar de suas boas obras; ele é apenas um escravo inútil (tradução grega do evangelho), e não um servo (um termo mais edulcorado). O cristão não deve exigir nenhuma recompensa: sua única alegria é servir, porque o crente sabe que é amado gratuitamente por aquele que serve: Deus... Esse Deus que encontramos no outro, nos outros.
A ausência de Deus
Eu não lhes digo nenhuma novidade se digo que Deus parece estar ausente das nossas vidas e da nossa realidade cotidiana. Diariamente, assistimos a tragédias, a acontecimentos que causam tantos sofrimentos... Onde está Deus em tudo isso? O que fazer? Por que não intervém? Essas questões são frequentemente colocadas; elas são o quinhão dos crentes, mas as respostas não são evidentes. Após a morte da Madre Teresa, um documentário foi apresentado na TV da Rádio Canadá, no qual é possível ver que a própria Madre Teresa duvidou de Deus, vendo a miséria e a grande pobreza das pessoas às quais ela consagrou a sua vida.

No evangelho de hoje, Lucas nos mostra que não era mais fácil crer no começo do cristianismo do que hoje: “Os discípulos disseram ao Senhor: ‘Aumenta a nossa fé’” (Lc 17,5), como se a fé pudesse ser medida e quantificada; a resposta de Jesus é desconcertante: “O Senhor respondeu: ‘Se vocês tivessem fé do tamanho de uma semente de mostarda, poderiam dizer a esta amoreira: arranque-se daí, e plante-se no mar. E ela obedeceria a vocês” (Lc 17,6). Há duas lições nesse versículo: 1) Basta um pouco de fé para fazer grandes coisas; afinal, o grão de mostarda é a menor de todas as sementes? 2) O mar é o símbolo das forças do mal e da morte; e plantar uma árvore é fazer surgir o bem do mal, a vida da morte... É o que há de sublime a se fazer.

Já no Antigo Testamento, no século VI a.C., vivia-se com dificuldades esta ausência de Deus. O profeta Habacuc, na primeira leitura de hoje, insurge-se contra Deus porque este não intervém para fazer parar a injustiça: “Até quando, Javé, vou pedir socorro, sem que me escutes? Até quando clamarei a ti: ‘Violência’ sem que tu me tragas a salvação? Por que me fazes ver o crime e contemplar a injustiça? Opressão e violência estão à minha frente; surgem processos e levantam-se rixas” (Hab 1,2-3). Apesar das suas dúvidas, o profeta não desespera; ele continua a exercer o seu papel de profeta, sendo uma sentinela e um vigia para seus contemporâneos: “Vou ficar de guarda, em pé sobre a muralha; vou ficar espiando para perceber o que Javé vai me falar, para ver como vai responder à queixa que eu fiz” (Hab 2,1). E pelo fato de o profeta guardar a esperança não significa que evita os acontecimentos trágicos por vir, isto é, o Reino de Judá será invadido pelos babilônios que levou a Assíria a estender o seu domínio sobre todo o Oriente Próximo; por outro lado, sua confiança em Deus permitirá que atravesse esses acontecimentos e sua esperança lhe permitirá afirmar que a injustiça não terá a última palavra. À fé e à esperança é preciso acrescentar a fidelidade: “Quem não é correto vai morrer, enquanto o justo viverá por sua fidelidade” (Hab 2,4).

A fé, portanto, não se mede. Ser crente não é ter fé ou possuí-la. Ser crente é ser, é tornar-se. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “A pergunta dos apóstolos dá a entender que a fé é alguma coisa que podemos ter ou perder, aumentar ou diminuir. Mas ninguém pode dizer à amoreira: Arranque-se daí, e plante-se no mar. Porque, com efeito, ninguém pode ter fé, porque a fé não é alguma coisa que se tem, mas é a vida que se vive e, sobretudo, no que se torna. Ninguém pode ter Deus”.

Relação patrão/empregado ou senhor/servo

Numa leitura superficial, poderíamos nos sentir humilhados por este relato. Em primeiro lugar, parece que Jesus nos acusa de não ter fé, e, em seguida, tem todos os ingredientes de querer nos rebaixar mais que serviçais. Poderíamos nos perguntar: mas onde está o Amor em tudo isso? Jean Debruynne prossegue: “Se Jesus retoma a parábola do servo, é justamente porque os apóstolos com seu espírito materialista continuam a ver Jesus como o patrão e a eles como os empregados. Ao passo que para Jesus, nós não fomos contratados para sermos empregados. Não é porque somos bons empregados que Deus nos ama. Deus nos ama porque Ele é Amor e isso basta. Não são os nossos méritos que contam, por mais importantes que sejam. Conta exclusivamente o Amor com que Deus nos ama. Não devemos imaginar que o cumprimento dos nossos deveres seja capaz de acrescentar ao Amor de Deus. Quem poderia pretender acrescentar qualquer coisa ao infinito? Paremos, então, de dizer: eu tenho fé, eu tenho menos ou mais fé. A fé não se dosa, vive-se. Então vivamos!”.

O evangelho de hoje traz uma mensagem: ele nos ensina, na vida, a não nos sentirmos indispensáveis. É mais fácil partir, quando é hora de partir... E Deus sabe até que ponto a vida pode, às vezes, ser cruel. Pensemos em todas essas mulheres e em todos esses homens, parentes... que foram bons empregados e que, ao mesmo tempo, sofreram a dureza da existência: a tragédia de Lac Mégantic, no verão passado onde numerosas pessoas perderam a vida de uma maneira atroz; o doutor Lucille Teasdale que morreu de Aids, querendo cuidar dos doentes de HIV, os monges budistas assassinados por terem combatido na Argélia, a religiosa da Providência, em Montreal, que morreu assassinada por um jovem delinquente que ela havia ajudado a sair das drogas... e como outros tantos! Quais foram suas recompensas? Não! A vida não é fácil para ninguém. Afinal, nos preparemos e digamos a nós mesmos que: “Somos servos inúteis (escravos inúteis); fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). Por outro lado, não devemos esquecer a promessa que nos é feita após ter cumprido tudo o que devíamos fazer: “depois disso você vai comer e beber” (Lc 17,8b). Não é o banquete do céu que nos é prometido? É a recompensa última que nos é dada pelo Amor, por esse Deus que é Amor.

Para terminar, eu gostaria simplesmente de compartilhar com vocês esta oração do francês Michel Hubaut, que se intitula: No Amor, nada é obrigação, tudo é dom! “Senhor, eu não vou esconder que esta parábola está atravessada na minha garganta! Como tu podes comparar Deus a esse rico proprietário que se faz servir como um príncipe por seu empregado que já trabalhou o dia inteiro e que, ao invés de ser reconhecido, o tratas como um homem inútil e um qualquer? Perdoa-me, Senhor, mas se Deus se parece com aquele senhor, eu prefiro ficar por minha conta!”

“(Jesus diz) Meu filho, eu te falei muito do meu Pai para que não imagines que ele se dirige aos homens como a mercenários ou a escravos! Mas, em cada um de vocês dorme um fariseu que acredita ter, por causa das suas práticas religiosas, os direitos sobre Deus e sobre o futuro. Nunca esqueça que nem suas obras nem suas virtudes vão merecer a vida e a salvação que meu Pai vos deu por pura gratuidade. Tudo é dom. Tudo é graça. A simplicidade do filho que sabe que recebe tudo de seu pai e de sua mãe não é humilhação, mas alegria de ser amado e de poder amar gratuitamente. Se eu vos lavei os pés, eu o Senhor e mestre, não foi para vos revelar que a verdadeira grandeza do homem está em servir?”
Réflexions de Raymond Gravel
* Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette, Canadá.

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