segunda-feira, 31 de março de 2014

Eu sou a luz

"Alegrai-vos com Jerusalém”" daqui a pouco, os vossos olhos se abrirão.
Por Marcel Domergue*
"Outrora éreis trevas", diz Paulo no início da segunda leitura. Fala de si mesmo também, uma vez que descobriu a sua própria cegueira no caminho de Damasco. O curioso é que esta perda da visão foi também a sua cura. Paulo, antes disso, acreditava de fato ver tudo muito claro. Achava possuir a verdade sobre o Cristo e os seus discípulos. Mas agora vê que, antes, não enxergava nada. É o que diz Jesus aos fariseus, na conclusão do evangelho: "Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis ‘nós vemos’, o vosso pecado permanece”. Todos nós somos cegos de nascença, sem que esta cegueira possa ser atribuída a qualquer pecado que ou nós ou nossos pais tenhamos cometido (versículo 2).

Isto nos obriga a nuançar o que habitualmente chamamos de «pecado original». Só podemos alcançar a verdade de nós mesmos, do mundo e, ainda mais além, a verdade de Deus, através da abertura para este Outro que está aqui, ao alcance de nossas mãos de cegos, presente em todos os outros. Temos de aprender que não nos bastamos a nós mesmos, que só por uma relação verdadeira é que existimos, recebendo-nos de algum outro. É assim que nos fazemos imagens (e ´imagem´ quer dizer visibilidade) de Deus que, como diz santo Tomás de Aquino, é "relações subsistentes". É outro modo de dizer que, se recusamos enxergar os outros, não vemos nada.

Abrir os olhos

Seria tarefa tremenda, se tivéssemos de chegar à visão através de nossas próprias forças. E tarefa destinada ao fracasso, uma vez que o esforço para ver com clareza não nos deixaria sair do nosso isolamento. Na realidade, a luz nos vem de fora, deste outro que encontramos em nosso caminho. Tomemos consciência disto: não compliquemos demais a vida, já que basta abrirmo-nos a nós mesmos para que possamos receber: a nossa criação só vai achar espaço quando viermos a ocupar apenas uma ausência, um vazio a ser preenchido. Não podemos ser nada além do que não seja aquiescência à obra de Deus que vem nos fazer surgir do nada. Esta tomada de consciência já é uma saída da cegueira. Nascer e abrir os olhos são fatos que andam juntos.

No evangelho, os fariseus se tornam cegos por não reconhecerem a visita do Filho de Deus em sua humanidade. Assim, em razão de uma escolha mais ou menos deliberada da nossa parte, a irrupção do Cristo em nossas vidas pode nos afundar nas trevas: «Era a luz verdadeira que ilumina todo homem; veio ao mundo (…), mas o mundo não o reconheceu. Veio para os seus e os seus não o receberam » (João 1,9-11). Esta recusa encontrará sua expressão última na hora em que «houve treva em toda a terra» (Mateus 27,45). Mas, aí também, as trevas só se apoderam do mundo para apagar as falsas luzes que nos seduzem. Cria-se, assim, um lugar perfeito para uma nova luz, a luz da Ressurreição.

Rumo à plena visão

Olhando mais de perto, o relato da cura do cego de nascença nos faz descobrir um dos aspectos da criação e do que chamamos de redenção, em outras palavras, a totalidade da obra de Deus em nosso favor. Notemos que o cego ainda não tinha visto Jesus, até mesmo pouco após a sua cura (ver o versículo 12). Por isso, foi preciso esperar um segundo encontro. O cego não havia pedido nada a Jesus e o milagre não foi atribuído à fé deste homem, ao contrário de tantos outros casos nos evangelhos. Ficou, assim, posta em evidência a gratuidade da ação de Deus: não tivemos de fazer nada, para virmos à existência; nada podemos fazer para virmos à luz e existirmos, na verdade. Só o que podemos fazer é receber.

No entanto, se esta verdade está na relação, no intercâmbio, no diálogo, um encontro entre quem dá e quem recebe se faz necessário. Daí a visita de Jesus a este homem que, dali em diante, será um solitário, pois acaba de ser banido da comunidade. "Acreditas no Filho do homem?", pergunta-lhe Jesus. O filho é quem é gerado por uma mulher e um homem; já com maiúscula, é o resultado perfeito da humanidade, ali onde o Filho do homem encontra o Filho de Deus. Crer nele é sair da finitude e da cegueira. "Quem é ele?", pergunta o cego já curado. "Tu o estás vendo", responde Jesus, pois agora o homem vê. "É aquele que está falando contigo". Ver, ouvir e, a partir daí, crer. É neste rumo que caminhamos, ainda que, por enquanto, só possamos ver de modo confuso, como num espelho defeituoso (1 Coríntios 13,12).
Croire
*Marcel Domergue é sacerdote jesuíta. O texto é baseado nas leituras do 4º Domingo da Quaresma (30 de março de 2014).

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