sábado, 7 de junho de 2014

Dois muros e o caminho para a paz

 



Os olhos do mundo se voltaram na última semana para a Terra Santa. A viagem do Papa Francisco, há muito planejada, era de suma importância. A agenda muito delicada. Tratava-se de dirigir-se ao território onde habitam israelenses e palestinos, e, ao mesmo tempo, o lugar sagrado dos cristãos por haver sido o lugar onde Jesus de Nazaré nasceu, viveu, morreu e ressuscitou.
Para deixar bem clara a motivação religiosa e pastoral de sua viagem, o pontífice viajou acompanhado por duas pessoas cuja presença amiga falava alto simbolicamente: o rabino Abraham Skorka, seu interlocutor muito próximo desde os tempos da Argentina, e o líder muçulmano Omar Abboud, presidente do Instituto para o Diálogo Inter-religioso de Buenos Aires. A postura do papa, de abertura e diálogo, já estava portanto patente em sua pessoa e em sua comitiva.
Já o início da viagem chamou a atenção pela escolha original do itinerário. Francisco chegou à Terra Santa pela Palestina, sem passar por Israel. Voou de helicóptero a Belém da Jordânia, onde começou sua viagem no sábado, tornando-se o primeiro pontífice a viajar diretamente à Cisjordânia em vez de entrar por Israel, outro aceno às aspirações palestinas. Enfrentou corajosamente o mal estar que isso poderia provocar na comunidade israelense para fazer um gesto de convocação à paz.
Em seguida, Francisco fez parada não programada - quebrando o protocolo - no Muro de Belém, visto pelos palestinos como um símbolo de repressão e separação. Ali rezou e fez um apelo à paz. Declarou claramente que era preciso acabar com a separação que tanto sofrimento traz a ambos os povos. E encantou seus ouvintes palestinos ao reivindicar um "Estado Palestino" como meta necessária das negociações de paz. Embora acrescentando que tal meta deveria ser alcançada por um diálogo e cuidadosa negociação, o papa deixou bem clara sua convicção de que os dois povos precisam ver reconhecida sua soberania e autonomia para poder viver em paz.
Inspiradamente, convidou os mandatários de Israel e da Palestina à oração em comum pela paz: "Aqui, no local de nascimento do Príncipe da Paz, eu gostaria de convidá-lo, Presidente Mahmoud Abbas, junto com o Presidente Shimon Peres, a se juntarem a mim em uma sincera oração a Deus pelo dom da paz".
Em Jerusalém, outro muro esperava por Francisco: o muro das lamentações frente ao qual seguramente Jesus de Nazaré e seus discípulos rezaram repetidas vezes e onde todo judeu piedoso encosta as mãos, o rosto, os lábios. Ali o Papa rezou em silêncio por vários minutos e, tal como fazem seus irmãos judeus, inseriu uma mensagem entre as pedras. Segundo o porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi, tratava-se do Pai-Nosso em espanhol. Em meio às orações e mensagens várias ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó, a oração de Jesus foi acrescentada por seu vigário na terra.
Com a visita e a oração feita frente a este segundo muro, o Papa já se aproximava do fim de sua peregrinação na Terra Santa. No Yad Vashem, construído em homenagem aos seis milhões de judeus mortos no genocídio nazista da Segunda Guerra Mundial, o Papa usou linguagem emocionada e forte. Falou na necessidade de toda a humanidade envergonhar-se dos crimes cometidos na Shoa contra tantas pessoas humanas pelo simples fato de sua identidade judaica.
Após beijar as mãos de seis sobreviventes da Shoa, Francisco simulou um diálogo entre Deus e Adão, onde o Criador repreende amargamente sua criatura pela monstruosidade cometida. A isto Adão responde implorando misericórdia e pedindo a graça de envergonhar-se do imenso pecado que foi capaz de cometer: destruir sua própria carne. A esta oração do primeiro homem criado, o pontífice deu voz em primeira pessoa.
Era a culminância de uma peregrinação no encalço da paz tão desejada e que parece tão distante. Com o habitual tom positivo e esperançoso que tem marcado todo o seu pontificado, Francisco quis fazer um forte apelo para um compromisso entre as três religiões monoteístas em favor da paz.
Mas não apenas quis fazê-lo em forma de apelo. Quis desde o início dizer: é possível. Assim se pode e se deve interpretar seu gesto de levar um judeu e um muçulmano consigo na viagem. Assim é permitido interpretar sua fervorosa oração diante dos dois muros: o de Belém e o de Jerusalém. Assim se ousa entender seu discurso pedindo misericórdia pelo holocausto nazista que pode estender-se a todos os outros holocaustos que uma humanidade violenta insiste em continuar cometendo.
Após esta peregrinação, as atitudes, os gestos e as palavras do Papa serão referência obrigatória para todas as iniciativas de diálogo, superação de conflitos e construção da paz. Os muros podem ser referências religiosas fundamentais para uma tradição, como é o caso do Muro das Lamentações. Mas não podem nem devem ser barreira de cruel separação entre povos, religiões e pessoas, como é tristemente o caso do Muro de Belém.



Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

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