quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Construir a 'paz justa', o caminho da Igreja


A passagem da justiça da guerra para uma paz justa não esquece as sacrossantas razões da proteção dos indefesos.
Por Pierangelo Sequeri*

A evolução mental que atesta o lento deslocamento do debate mundial sobre o problema da guerra justa ao tema de uma paz justa deve certamente ao magistério papal dessas décadas um apoio e um impulso decisivo.
As aparições dessas intervenções podem imprimir na memória do público midiático a percepção de um caráter extemporâneo dos diversos pronunciamentos. Na realidade, a diversidade de perfil dos focos de conflito, todas as vezes, é enquadrado coerentemente na sua especificidade, justamente aos fins de um eficaz delineamento de uma nova estratégia mental de combate à fatalidade do recurso ao modelo da guerra, para remediar a violência.
A passagem certamente é cheia de dificuldades. Não deve apenas se afirmar diante de uma longuíssima inércia desse modelo, que tem a vantagem de traçar uma simplificação mental do conflito, e das razões do conflito, que ainda o fazem aparecer como uma competição à qual não se pode se subtrair e que concede a honra e a verdade ao vencedor.
A passagem também tem deve fazer as contas com muitos medos, não incompreensíveis, de permanecer inermes e sem proteção. E deve desvendar muitos equívocos, instrumentalizações e hipocrisias: que confundem as coisas com jogos interessados de palavras, em que os carnífices e as vítimas trocam de papéis em função das partes. Desse modo, acaba-se suspeitando também dos apelos à paz, assim como se suspeita da propaganda de guerra.
Apesar de todo esse emaranhado e de outras coisas ainda, a ideia da guerra justa, entendida como instrumento normal para afirmar legitimamente os próprios interesses (que, justificado pelas suas próprias razões, depois justifica tudo), perde campo inexoravelmente.
A história do século passado – a partir do "massacre inútil" da Primeira Guerra Mundial, frase de um papa também esta – tirou-lhe todas as razões. A história recente, além disso, está tirando razões também das chamadas formas não convencionais da guerra: estas, de fato, qualquer que seja a sua desesperada justificação, parecem tão fatalmente contíguas às formas do terrorismo, do genocídio, da morte indiscriminada dos indefesos que leva a pensar que o seu caráter não convencional significa, na realidade, uma passagem mundial à pura barbárie dos conflitos.
Sem falar do retorno à guerra como instrumento quase imediato de gestão de conflitos também locais, que os Estados nacionais não podem ou não querem conter. Um desvio semelhante varre todas as regras: a antiga da arte da guerra, assim como a da Convenção de Genebra.
Afinal, na própria cultura pré-cristã (Platão, Aristóteles, Cícero), como depois – e com mais razão e com maior obstinação de limitações – na elaboração da doutrina da "guerra" dentro do mundo civil-cristão, o tema ainda era o do estado de "exceção". E a discussão dizia respeito às muitas e graves limitações que deviam tornar aceitável uma forma da legítima defesa tão grave e tão dramática.
Não existe uma justificativa "de princípio" da guerra. Porém, o fato é que a inércia absolutória da fórmula, unida à homologação do conflito de interesses (bens e dinheiro) entre os argumentos dignos de todo sacrifício, acabou endossando a guerra como opção normal e de princípio.
Não há dúvida, porém, de que a inércia do modelo da guerra como figura da justiça afunda agora, aos olhos dos povos – mas, há alguns anos, já afunda explicitamente ao vivo e nas crônicas –, na negação mais do que comprovada da sua suposta relação entre meios e fins (uso da força para levar a melhor, em vista da resolução das contendas).
Quando João Paulo II proclamou o advento de uma nova época, com aquele seu grito profético "Nunca mais a guerra!" – porque a guerra não resolve nada, nem mesmo os problemas que a suscitaram –, ele inaugurou a séria determinação de um caminho irreversível.
Um caminho ao qual agora todas as culturas mundiais devem se aplicar, já que elas mesmas acumularam muitas e testadas razões para fazer isso. A passagem da justiça da guerra para uma paz justa não esquece as sacrossantas razões da proteção do indefeso e da proteção do inerme, que ontem permaneciam encistadas ambiguamente na interpretação incorreta da justificação da força em defesa do direito.
Por isso, não deve surpreender nem ser motivo de apreciação da seriedade da reflexão cristã que o próprio João Paulo II tenha introduzido o tema da defesa humanitária, que contempla o uso da força proporcional à contenção de uma injusta agressão exterminadora do inerme e à proteção do seu direito à sobrevivência e ao cuidado.
O apelo à constituição de um discernimento, de um juízo e de uma decisão internacional indica precisamente o caminho da formação de uma instância que deve barrar a estrada, nos limites humanos, para um julgamento unilateral, autorreferencial, arbitrário.
E, acima de tudo, uma instância que, diante de uma orientação precisa dos povos à defesa de uma humanidade na qual se enfurece o espírito de destruição, mostre-se comprometida a excluir o recurso ao modelo da guerra, mostrando persuasivamente a melhor eficácia das estratégias de defesa da paz. Das quais a intervenção contenedora da força é precisamente a condição totalmente necessária e, ao mesmo tempo, totalmente insuficiente.
As outras condições são justamente aquelas evidenciadas pela elaboração de um verdadeiro direito da cooperação eficaz e da solidariedade internacional dos povos, no horizonte de uma justiça não só distributiva, mas, em primeiro lugar, humana, cultural, amical.
Leiamos agora, palavra por palavra, a precisão milimétrica – filológica, eu diria – das frases com as quais a entrevista do Papa Francisco selou essa incrível aceleração do mais alto magistério cristão, que recupera a doutrina tradicional de legítima defesa no contexto de um impulso propositivo audaz, avançado, à frente do progressivo – mas ainda incerto – consenso internacional.
Não se trata apenas de trazer à tona o tema da legítima defesa do contêiner semântico obsoleto da guerra justa. Trata-se também de não deixar espaço a um pacifismo genérico e retórico do "ficar em paz". O horror da normalidade com que se pratica a crueldade ("Hoje, as crianças não contam!") e a tortura (sob o pretexto da segurança e da dissuasão) indica claramente que o limite foi superado.
E ninguém pode, sob nenhum pretexto, virar-se para o outro lado. O humanismo da paz justa não se isenta do compromisso de um difícil discernimento, da fadiga de uma vigilância incessante, do sacrifício generoso da presença e do testemunho para atestar a persuasividade e a eficácia da busca de meios alternativos à guerra.
No pano de fundo da evolução atual de uma vasta sensibilidade que deve ser mais resolutamente encorajada, as suas poucas frases são realmente o ícone de uma composição bastante precisa e astuta da síntese que o mundo está buscando, e que o cristianismo – com uma determinação crítica e também autocrítica que, enfim, deverá ser compartilhada – nos exorta a encontrar.
Naturalmente – mas a fé assume a responsabilidade por isso, sem ter que pedir a ninguém – o cristianismo não desiste de dar o seu testemunho especial, que nos guarda na humildade de todas as nossas presunções. E nos torna tenazes na esperança que resiste sempre de novo ao desespero. Nós acreditamos sem constrangimento na oração de proteção e na invocação a Deus pela iluminação das mentes e a vergonha dos corações. Nós acreditamos na eficácia de uma fé que se arrisca livremente na entrega de si mesma à prova do amor maior.
E assim nós honramos a todos os nossos irmãos e irmãs – e a todos aqueles que Deus ama, de qualquer a que pertençam – que se protegem uns aos outros do mal. E sentimos que devemos merecer esse testemunho, nós, habitantes de imerecidos confortos. Porque todas as vezes que um único ser humano se liberta do mal, graças a Deus, muitíssimos outros encontrarão a coragem de mantê-lo longe.
Avvenire, 20-08-2014.
*Pierangelo Sequeri é reitor da Facoltà Teologica dell'Italia Settentrionale. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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