segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Em tempos de violência, é possível optar pela paz


Cabe a nós o discernimento e a prática de atividades eivadas de uma profunda reflexão sobre os rumos da sociedade.
Ao tratar o tema da paz/violência, o ser humano se defronta com o mais profundo de si mesmo. Defronta-se com forças obscuras, instintivas que o processo de humanização foi domesticando, domando. Tema que a psicanálise e a antropologia desenvolveram e que a filosofia de Nietzsche sistematizou. O preço pago pela civilização foi a repressão das forças biológicas primárias: a luta pelo alimento e pelo parceiro sexual e a imposição violenta sobre o mais fraco. A civilização, fruto da repressão, dependia desta para se manter.

Do ponto de vista político, Engels via na violência “a parteira da história”, a força que move as relações sociais marcadas pelo conflito de interesses. Visão frequentemente associada à de Marx, que, entretanto, segundo algumas hermenêuticas não defendia a violência como arma política (nem todos interpretam assim). Porém, quem pensou assim com certeza foi a nova esquerda dos anos 60 e 70, fortemente influenciada pelo pensamento de Mao-Tse-Tung, que vinculava poder e violência. Para ele, o poder estava “no cano de uma arma”.

Uma defesa apaixonada da violência como arma política revolucionária foi feita por Sartre no prefácio do livro-manifesto: Os condenados da terra, de Frantz Fanon. Originário da ilha de Martinica, Fanon formou-se médico em Paris e testemunhou a violência colonialista na Argélia. A violência do colonizador tornava “bela” a violência heroica do colonizado. No prefácio do livro, Sartre diz: Essa violência irreprimível, ele (Fanon) o demonstra cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição dos instintos selvagens e nem mesmo um efeito do ressentimento: é o próprio homem que se recompõe.

Era uma apologia da violência, que ia além da simples análise política, fazendo dela a expressão da humanidade do ser humano, o qual afirma sua dignidade e liberdade no enfrentamento com o opressor. Era a voz do colonizado argelino que, em nome dos próprios ideais (na realidade, ideologia) do colonizador se opunha a ele. Não percamos tempo com litanias estéreis ou mimetismos nauseabundos. Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo. Há séculos… que em nome de uma suposta aventura espiritual vem asfixiando a quase totalidade da humanidade.

É uma linguagem passional, explosiva, panfletária, expressão do clima emocional dos franceses na guerra colonial argelina. A seu modo, Fanon expressava um pensamento substitutivo à visão puramente moralista que justificava (ou não) a violência em nome de um homem abstrato, idealizado. Agora contava o homem real, concreto, situado, relacionado com a natureza e com os outros pelo trabalho. Relações que se fundavam na exploração do homem pelo homem e o impediam de ser ele mesmo. A violência “constituía” esse mundo. Dessa forma, a violência dos oprimidos era, na realidade, uma contra violência. A guerra do Vietnã exacerbou ao máximo esse “sentimento”: era a luta de Davi contra Golias.

Com a mudança das condições sociais, essa violência “costumeira” cedeu lugar a uma violência inovadora que se manifestou, por exemplo, na Guerra do Contestado. A violência se inseria num quadro em que os desiguais se tratavam como pessoas, num gênero de vida que não contemplava o controle direto dos subordinados. Dominadores e dominados eram vistos como iguais dentro de um mundo homogêneo e indiferenciado.

A violência mais óbvia e, ao mesmo tempo, a mais escondida é a cotidiana. Falar de violência urbana é quase redundância, uma vez que, nos centros urbanos, o medo é a sensação dominante. Há a violência manifesta, visível — assalto, roubo, agressão, ofensas, palavras e gestos obscenos no trânsito… —, mas também há a invisível, insidiosa, perversa, que se expressa na necessidade de se proteger, que torna o “confiar no outro” num risco. A desconfiança com relação ao policial, ao vendedor, ao produto é uma forma “necessária” de se resguardar. Quando o vigia pode ser apenas informante, quando o policial pode ser o braço invisível do criminoso, o que se tem é um quadro de destruição do tecido social.

No interior de uma descrença generalizada nas instituições, o “quem pode mais” e o “cada um por si” tornam-se leis. A vida social tende a reduzir-se à formação de pequenos grupos aos quais se adere por interesses comuns. Às vezes eles mesmos violentos: as gangues, os pitboys, as torcidas organizadas, os skinheads. A xenofobia — ódio ao outro, ao diferente (étnico, sexual, cultural) — vai além do simples preconceito discriminatório passivo. No limite, leva à eliminação física, como o assassinato de homossexuais. É a violência oculta no desemprego que faz o sem-trabalho sentir-se inútil, “ninguém”, até mesmo para os próprios familiares. É interessante notar que o vocabulário ligado ao trabalho, no capitalismo, tem conotação “violenta”: de exploração passa a direito; de direito, a privilégio.

Uma espécie de “cultura da informalidade” produz a sensação de se viver em meio a forças clandestinas e incontroláveis, à ameaça de um mundo à margem: a falsificação, o trabalho informal, a lavagem de dinheiro, o terrorismo, o tráfico de drogas, de órgãos, os paraísos fiscais… constituem uma “sociedade” dentro da sociedade. O crime organizado torna-se forma “necessária” de sobrevivência; o traficante pode aparecer como o protetor indispensável, o “assistente dos desvalidos” para as populações marginalizadas; a guerrilha política e o narcotráfico trocam favores entre si em certos países.

Em um mundo religioso fluido, a busca de identidade torna-se crucial. Pluralismo religioso implica conflito. Afloram percepções e vivências contraditórias do fenômeno: a sensação de liberdade — escolher a própria crença — soma-se à necessidade de certezas. A “era do relativo” suscita inquietações e resistências. Põe em questão identidades até aqui aparentemente estáveis, confiáveis, reconhecidas, garantidas por instituições religiosas ou não. E estas estão em crise, com muita dificuldade para dizer a verdade — e, quando o fazem, são ouvidas como portadoras de uma opinião entre outras. Apresentar-se como “a verdade” deslegitima mais do que qualifica uma instituição.

Eis as questões que nos são colocadas como pano de fundo de nosso caminhar nos tempos atuais. Cabe a nós o discernimento e a prática de atividades eivadas de uma profunda reflexão sobre os rumos da sociedade. Um tempo que nos questiona e que exige de todos uma resposta da qual não nos podemos eximir. Isso poderá direcionar o nosso futuro.
CNBB, 15-08-2014.
*Dom Orani João Tempesta é cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro.

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