sábado, 6 de fevereiro de 2016

Deixaram tudo e seguiram a Jesus


A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês.
Isaías "viu" o Deus santo. Mantiveram breve troca de palavras: "Quem enviarei? [...] Envia-me". Paulo, "o abortivo" que se tornou Apóstolo, confirma a gratuidade da graça. Simão-Pedro, que emprestara o barco para o Mestre, recebe insólita ordem. Obedece e torna-se pescador de homens. Três vocações... Deus conhece o segredo da nossa.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 4º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo C (31 de janeiro de 2016). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Eis o texto.
Rumo às águas profundas

No evangelho, Jesus está cercado por uma multidão entusiasmada. Mais afastados, pescadores lavam suas redes, indiferentes, ao que parece, à presença e às palavras de Jesus. Estes são, no entanto, os homens que Jesus chama e escolhe. Começa pedindo-lhes um pequeno favor: apertado no meio da multidão, estará mais a vontade a bordo de seu barco, para falar a todas as pessoas. Nas Escrituras, temos vários exemplos desta espécie de preferência divina pelos que estão mais afastados. Lembremos a viúva e o leproso do evangelho do domingo passado; da escolha de Davi, o caçula esquecido, retirado de trás da fila de ovelhas, para tornar-se o pastor de Israel, o povo de Deus (ver Salmo 78,70-72). Lembremos também da centésima ovelha que, por estar perdida, ganha maior importância do que as outras 99… Os que irão se tornar as colunas da Igreja não foram escolhidos entre os notáveis de Israel, mas entre os pescadores da Galiléia. Assim como o pastor das ovelhas foi feito pastor do povo, os pescadores de peixes também se tornarão pescadores de homens. Enquanto esperam, serão atores de um sinal espetacular, verdadeira proeza no ofício que estão para deixar. Primeiro, são convidados a seguirem rumo às “águas mais profundas”, a deixarem a multidão para buscar horizontes novos. Temos, assim, a pesca milagrosa. Chegam ao cume da sua profissão. Impossível ir mais longe: as redes se rompiam e os barcos ameaçavam afundar-se. Pois, terão de realizar uma pesca em águas profundas, para além da sua pesca habitual. Mais que mudar de profissão será entrar numa nova humanidade.

"Pescadores de homens"?

À primeira vista, a ideia de pescar homens como se pegam peixes pode chocar. Mas não esqueçamos que a Bíblia opera por imagens, provenientes de uma cultura que em boa parte nos é estranha. E que estas imagens sempre precisam ser interpretadas e superadas. Outros textos nos farão compreender que não se trata de lançar alguma isca nem de capturar. Em 1 Pedro 3,15, por exemplo, lemos: «Estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede; fazei-o, porém, com mansidão e respeito.» Antes de qualquer coisa, o nosso comportamento, pessoal e coletivo, é que pode propor a estes que dele são testemunhas as questões da nossa fé. Em outras palavras, a caridade, o amor e o cuidado para com os outros, sem nenhuma intenção de conquista ou de lucro dissimulada, é o que lhes pode abrir os olhos. Só num segundo momento, já dentro da barca de Pedro e a título de consequência, é que poderão receber os preceitos morais da Igreja e as exigências do culto. Notemos que a primeira atitude de Pedro e de seus companheiros foi a de deixar tudo, tudo o que estavam fazendo e em que consistia a sua vida até ali, para seguirem a Jesus. Uma ligação pessoal, uma relação de amor nasceu ali: o resto virá mais tarde e será apenas a expressão deste amor. Para dizer a verdade, este «deixaram tudo e seguiram a Jesus» pode ser vivido de muitas maneiras. Para a maior parte de nós, trata-se de viver de outro modo tudo o que a vida nos deu para viver. Notemos que a primeira reação de Pedro diante da «pesca milagrosa» foi de espanto, de medo. Para deixar tudo e seguir a Cristo será preciso passar do medo ao seu contrário, à fé.

Do medo à fé

Passar do medo à fé, da tristeza das pescas inúteis à alegria da esperança, diz respeito a nós todos, mas isto nunca é feito de uma vez por todas. É algo a se refazer todos os dias. Para isso, basta nos abrirmos para acolher o pão cotidiano que nos é dado. Só que abrir-se ao dom de Deus não é assim tão fácil! E esta, sem dúvida, é uma das razões pelas quais muitos dos nossos contemporâneos abandonam a fé: vivemos de fato uma época em que não se tem segurança de nada. E isto não facilita em nada passar do medo à fé. Fundar a própria vida numa mensagem que nos foi dada há dois mil anos atrás, ligar-nos a um Cristo que nunca vimos exige atravessar muitas aparências. Estes que deixam a Igreja, em sua maior parte, pertencem a um cristianismo sociológico que foi herdado das suas famílias, do seu meio, das suas tradições. Mas a fé supõe o encontro espiritual do Cristo, numa evidência da sua presença atual. O único milagre permanente que pode nos convidar à fé é a fé de todos os que ainda hoje aderem ao Cristo, há tanto tempo já fora das nossas vistas. A fé é inexplicável. O Livro que as primeiras testemunhas nos legaram não é suficiente. Mas, visível a todos, temos o seu corpo que é a Igreja, nós todos reunidos. Como escreve Pedro em sua primeira carta (1,8), amamos o Cristo apesar de não tê-lo visto, cremos nele, embora sem vê-lo. Fala assim aquele que foi o primeiro pescador de homens.
Referências Bíblicas:
1ª leitura: «Aqui estou! Envia-me» (Isaías 6,1-8)
Salmo: Sl 137(138) - R/ Vou cantar-vos ante os anjos, ó Senhor.
2ª leitura: «É isso o que temos pregado e é isso o que crestes.» (1 Coríntios 15,1-11 ou 3-8.11)
Evangelho: «Deixaram tudo e seguiram a Jesus.» (Lucas 5,1-11)
Instituto Humanitas Unisinos

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