terça-feira, 20 de agosto de 2013

Bom Samaritano (Lc 10,25-37): estudo literário



(Foto: Reprodução)
Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, fazer um estudo literário do texto. Eis o que segue.

1 - Estudo literário do texto

O texto de Lc 10,25-37 está organizado em duas partes de tamanhos diferentes com estruturas literárias com várias equivalências, conforme se segue:

1ª parte (Lc 10,25-28) - 2ª parte (Lc 10,29-37)

Pergunta do escriba - Pergunta do escriba

Contrapergunta de Jesus - Jesus narra um episódio paradigmático

O escriba cita a lei - Contrapergunta de Jesus e Resposta do escriba

Diretiva de Jesus - Diretiva de Jesus.

As palavras “próximo” e “fazer” são duas colunas-mestras no texto. Percebe-se uma ênfase sobre o outro, um desinstalar-se de si mesmo e uma defesa forte de uma prática libertadora, de ação concreta. Sinalizam que uma postura misericordiosa implica um sair de si mesmo, um arregaçar as mangas e colocar mãos à obra. Não basta ter boas intenções.

Na segunda parte (Lc 10,29-37) temos o episódio-parábola propriamente dito (Lc 10,30-35) e a sua aplicação (Lc 10,36-37). Nos versículos 25-27 encontramos a primeira questão levantada pelo escriba e alguns textos bíblicos do Primeiro Testamento que apareceram para iluminar a questão, em um diálogo profundamente educativo (Dt 6,5 e Lv 19,18).

No versículo 28, Jesus responde citando, implicitamente, um texto de Lv 18,5: “Faça isso e viverás”. Importante observar que Jesus não diz “terá vida eterna”, mas diz “viverás”. Em outros termos, o Jesus de Lucas quer provocar conversão nos discípulos e discípulas que estavam olhando para o céu esquecendo-se de abraçar os desafios do aqui e do agora, na terra. Olhe para o “aqui e agora!” Eis o caminho que leva à vida em plenitude.

2 - Introdução (Lc 10,25-28)

Nos evangelhos encontramos basicamente dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus. Uma é a pergunta feita pelos marginalizados e excluídos, que pedem para andar, para voltar a enxergar, para serem curados, para serem saciados. Com a vida ameaçada aqui e agora, eles clamam por vida aqui e agora. O outro tipo de pergunta dirigida a Jesus nos evangelhos é aquela feita por pessoas ricas, as quais já têm o aqui e agora assegurados e estão preocupadas com o pós-morte. Nesse grupo se insere a pergunta de Lc 10,25: “Mestre, que coisa devo fazer para herdar a vida eterna?”

A pergunta sobre o caminho para alcançar a “vida eterna”, feita por um “escriba”, aparece também em Lc 18,18 na boca de um rico notável. O evangelista tem a finalidade de reforçar a importância do decálogo como caminho para a vida plena. À primeira vista, parece que estamos diante de duas tradições diferentes ou em face de episódios distintos do ministério de Jesus.

“Amar a Deus” é uma das constantes características de todo o corpo deuteronomístico  e está intimamente interligada com “amar o próximo”. Não existe um amor integral a Deus se falta amor ao próximo a partir do outro mais injustiçado. O caminho que leva a Deus passa necessariamente pelo próximo. Dedicar-se a Deus e ao próximo são duas faces da mesma medalha e é significativo que Dt 6,5 e Lv 19,18 estejam em Lc 10,27 como uma “leitura” da lei que revela a íntima ligação entre amar a Deus e amar o próximo: “O que está escrito na lei? Como tu lês?” (Lc 10,26).

3 - Episódio-parábola do bom samaritano (Lc 10,29-35)

A própria forma estilística do episódio-parábola é profundamente relevante. Com repetição progressiva, somente na terceira vez chega-se a um desfecho favorável. Isso cria um suspense e prende a atenção do leitor. E é de fácil memorização, o que se revela tremendamente pedagógico em uma cultura com um alto índice de iletrados, onde predominava a oralidade.

Em Lc 10,29, com a pergunta do escriba “Quem é meu próximo?”, estabelece-se a conexão de Lc 10,25-28 com Lc 10,29-37. Na segunda parte (Lc 10,29-37), Jesus não responde imediatamente, mas acrescenta o episódio-parábola e indica a importância que deu ao escriba, que lhe perguntou. A lei apresenta uma resposta mais direta, enquanto o episódio-parábola interroga e interpela, o que é muito mais incômodo. Jesus não dava respostas prontas. Ao não responder diretamente e ao contar um episódio-parábola, Jesus agiu pedagogicamente, visando tornar o escriba um próximo. Jesus não o excluiu a priori, mas empreendeu uma caminhada pedagógica que visava promover a conversão do escriba.

4 - Conclusão do relato (Lc 10,36-37)

Jesus, depois de contar o episódio-parábola, retomou o diálogo com o escriba redimensionando completamente a pergunta feita no versículo 29: “Quem é o meu próximo?” Jesus perguntou: “Em sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lc 10,36). Essa nova pergunta redimensiona completamente a forma de entender a relação com o próximo. A relação se dará não mais a partir de mim mesmo, mas sim a partir do outro, e principalmente do outro que sofre por ser injustiçado.

Para o sacerdote e o levita, o homem semimorto havia-se transformado em um obstáculo, enquanto para o samaritano esse mesmo homem caído à beira do caminho transformou-se em motivo para proximidade. O sacerdote e o levita não apenas ignoraram o homem semimorto, mas foram-lhe indiferentes, distanciaram-se e contornaram o “obstáculo”. De outro modo, o escriba, mesmo evitando pronunciar a palavra samaritano, reconhece o samaritano como referência a seguir (Lc 10,37). Jesus, com dois imperativos — Vá e faça!—, convida o escriba a ser um discípulo do “bom samaritano”, o que pode causar desconforto, pois normalmente pensa-se que só se pode ser discípulo de Jesus.

Gilvander Moreira é frei e padre carmelita. Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), do Serviço de Animação Bíblica (SAB) e Via Campesina. Autor de alguns livros: Compaixão-misericórdia, uma espiritualidade que humaniza (Ed. Paulinas, 1996), Lucas e Atos, uma teologia da História (Ed. Paulinas, 2004) e co-autores de vários livros do CEBI. 

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