domingo, 23 de março de 2014

A pobreza do outro

Se a pobreza empalidece no rosto do outro a semelhança com Deus, a Igreja não pode descansar.
A Igreja respira encantada com o Papa Francisco e o movimento que inaugurou e mantém de volta ao Concílio Vaticano II e sua renovação.  Seu pontificado vem marcado por essa retomada do espírito de liberdade e abertura daquele inesquecível evento eclesial que aconteceu há 50 anos.

Na América Latina, a recepção deste Concílio se deu em uma direção bem marcada de fidelidade ao contexto do continente, feito de pobreza, injustiça e opressão. Toda a Igreja do continente releu o grande evento do Vaticano II com uma atenção qualificada àquelas grandes maiorias que se encontravam mais necessitadas, mais fragilizadas e mais empobrecidas.  A chamada opção preferencial pelos pobres foi o nome cunhado para “batizar” essa escolha evangélica feita pela comunidade eclesial naquele momento histórico.

Após um tempo longo que já foi chamado por grandes teólogos e pessoas da Igreja de “inverno eclesial”, onde parecia que – entre outras – a primordialidade dos pobres havia ficado na sombra, eis que foi lançado recentemente em Roma o livro do Prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller: “Ao lado dos pobres”. Trata-se da mais alta autoridade em termos de doutrina da Igreja Católica e, portanto, guardião da indiscutível legitimidade do conteúdo do livro.

Mas há mais: Müller não escreveu o livro sozinho.  Acompanhou-o outro teólogo: o pai da Teologia da Libertação, o sacerdote peruano da Ordem dos Pregadores, Gustavo Gutiérrez.  No prefácio, Joseph Sayer, presidente da Obra Assistencial Misereor, identifica o teólogo peruano como uma pessoa apaixonada.  E como não haveria de sê-lo quem passou a vida servindo os pobres, vivendo junto a eles e lidando apaixonadamente com a pergunta:  “Como se pode falar do amor de Deus perante a miséria dos pobres e a injustiça do mundo?”.

Ou seja, o alerta lançado por Hans Jonas após a Segunda Grande Guerra e o holocausto nazista: “Como falar de Deus depois de Auschwitz”? ecoa novamente diante de outro genocídio: aquele cotidiano que mata continuamente milhares e mesmo milhões de pessoas em todo o planeta. Gustavo Gutiérrez  descobriu, vivendo perto dos pobres, que toda teologia deve fazer-se esta pergunta e deixar-se atingir por ela, para então construir seu discurso sobre Deus.  Pois, concordando com a frase de Berdiaev, “se eu tenho fome, é um problema biológico.  Se o meu irmão tem fome, é um problema teológico”.

E foi justamente a pobreza do outro a interpelar com pungente insistência a fé que levou Gutiérrez a criar a corrente chamada Teologia da Libertação, que posteriormente ganhou muitos adeptos não apenas na América Latina, mas também no hemisfério Norte e no mundo inteiro.  Essa teologia e seus protagonistas também conheceram dificuldades e conflitos devido à opção de fazer teologia ao lado dos pobres e a partir de suas interpelações.  Foram convocadas a testemunhar e provar sua pertença eclesial e sua ortodoxia.

A teologia de Gustavo Gutiérrez ofereceu essa prova em suas obras, nas quais o compromisso inarredável com os pobres se alia indissoluvelmente à mais profunda espiritualidade cristã e à mais profunda fidelidade à Igreja.  Ela ajudou a Igreja a redescobrir o compromisso com a justiça e o anúncio da boa nova aos pobres como um de seus imperativos centrais.

O Papa Francisco, em prólogo feito ao livro, agradece profundamente aos autores que chamam assim a atenção para este tema fulcral na Igreja: a pobreza do outro que é critério de verificação da confissão de fé cristã.  Afirma sua esperança de que os leitores terão o coração tocado pela exigência de uma conversão a esses que, maltratados pela sociedade injusta, são os prediletos de Deus.  E diz literalmente: “E bem saibam, amigos leitores, que nesta exigência e nesta via, me encontram desde agora com vocês, como irmão e sincero companheiro de caminho. “

O Cardeal Müller, o teólogo Gutiérrez e o Papa Francisco querem dizer que enquanto a pobreza empalidecer no rosto do outro o fulgor de sua imagem e semelhança com Deus, a Igreja não pode descansar.  O que importa nem é tanto tal ou qual corrente teológica.  Importa, sim, a realidade vital dos pobres.  Enquanto esta for uma interpelação dolorosa e cruel lançada à consciência da humanidade, as preocupações e a reflexão da Teologia da Libertação estarão mais do que vivas.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

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