sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Deus nos humaniza 2




Não precisamos escolher entre Deus e a humanidade (Foto: Reprodução)
Ofereço aqui  mais um pouco de ‘teologia pública’, porque meu texto da semana passada ficou incompleto. Expliquei que o ‘Deus cristão’ participa, em Jesus de Nazaré, da existência humana, até a morte por amor. Assim, nossa humanidade deve ser vista, não em competição com o poder de Deus, e sim, em solidariedade com Ele – o que, biblicamente, se chama: Aliança.

É preciso aprofundar mais essa solidariedade, porque nas cabeças e nos corações está cravada a oposição entre o humano e o divino. Apesar de séculos de cristandade! Ou, talvez, por causa de certo tipo de cristandade...

Não precisamos escolher entre Deus e a humanidade. Deus já fez a escolha. Escolheu por ser humano, e por esta escolha revela o homem a si mesmo como sendo capaz de muito mais do que ele pensava: capaz de Deus.

Muita gente pensa que ser descontrolado, omisso, inconfiável, incoerente, é ‘humano’. Pois bem, a vida humana de Jesus (e de muitos daqueles que o seguiram) ensina o contrário. A fidelidade de Jesus ao seu caminho, que aos olhos do mundo pareceu um fracasso, é isso que é humano de verdade.

Outro aspecto: há quem pense que dedicar tempo e atenção a Deus – se assim podemos descrever a religiosidade – é carolice. Os machistas dizem: coisa de mulher (esquecendo que o judaísmo e o islã são religiões para os varões!). Pois bem, a Carta de Tiago e muitos outros textos da Sagrada Escritura nos ensinam que a verdadeira religião é prática, ética: “sustentar os órfãos e as viúvas em suas necessidades e guardar-se da contaminação do mundo” (Tiago 1,27). Não é perda de tempo.

Não que ética e fé em Deus sejam a mesma coisa. Conhecemos pessoas profundamente éticas (graças a Deus) que dizem não acreditar em Deus. A consciência ética não depende de um raciocínio teológico. Está embutida no coração, faz parte da humanidade. Mas o Deus cristão a aprofunda, a humaniza.

O Deus cristão, cujo retrato visível, ou relato narrável, é Jesus de Nazaré, nos faz entender que ‘pecar’ não é humano, mas inumano, porque fica aquém da possível humanidade. A Carta aos Hebreus (4,15) escreve a respeito de Jesus, literalmente: “tendo sido posto à prova quanto a tudo, segundo a [nossa] semelhança, menos o pecado”.  Muitas vezes isso é interpretado como se Jesus tivesse vivido aparentemente como nós, mas sem ser tentado pelo pecado. Mas então ele não teria sido bem igual a nós. Devemos levar a sério a primeira parte da frase: foi posto à prova como nós em tudo, inclusive na tentação ao pecado. Em tudo isso ele foi semelhante a nós, sem, porém, pecar.

Reflitamos então sobre essa semelhança. Adão e Eva (= todos nós) eram chamados à semelhança com Deus (Gênesis 1,26-27), mas não a realizaram: pecaram (pelo pecado que é o de todos nós, seja lá qual for). Jesus assume nossa semelhança e a realiza completamente: não pecou. Porque nossa semelhança é chamada a ser semelhança com Deus, o que significa algo prático, um modo de agir que combine com Deus. Por isso o Antigo Testamento diz: “Sede santos porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Levítico 19,1). E Jesus traduz isso como “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mateus 5,48), ou “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lucas 6,36).

Em sua semelhança humana, Jesus nos revela nossa possível (e desejável) semelhança com Deus. E ao mesmo tempo nos faz perceber, por seu modo de existir e levar sua existência a termo, os indícios do sentido que isso confere ao nosso ser. Esses indícios não são formulados em forma de dogmas, mas apresentam-se em forma de uma prática de vida (e morte), que a nós cabe reinterpretar, para e por meio de nossa vida e morte, enquanto pessoas abertas à comunidade e ao mundo.

E mais: a fé cristã acredita não somente que Jesus nos revela nossa verdadeira capacidade humana, mas ainda que recebemos a força e a luz para realizá-la, e essa força e luz chama-se o Espírito – o Espírito de Cristo e de Deus.

Em soma: não somos destinados a uma existência fraca, fracassada. Pelo contrário, nas provações da vida podemos mostrar que o Espírito que animou Jesus anima também a nós, fazendo-nos superar a insignificância de uma vida entregue aos ventos e às ondas do momento.

Tudo isso parece muito pessoal. Não é, ao contrário, a coletividade o ‘homem novo’ que abre novos rumos na história? Mas creio que o sentido de nossa vida se realiza pelo que pessoalmente assumimos. Só que pessoa significa abertura, comunicação. A minha humanidade se realiza com a humanidade de todos. E ficar aquém de minha possível humanidade compromete a humanidade de todos. O sujeito coletivo não substitui o sujeito pessoal. Está em intrínseca conexão com ele, numa relação dialética. Todavia, a liberdade tem sua fonte em cada um de nós, e essa fonte tem muito a ver com Quem a faz brotar...

Johan Konings Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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