sábado, 16 de fevereiro de 2013

Recolher ou acolher? Qual o seu papel diante das drogas?


Por Rocélia Santos – Rio de Janeiro
Essa é a indagação que o padre Renato Chiera, fundador e diretor da Casa do Menor, faz a toda a sociedade diante da problemática da dependência química, principalmente do crack. Aos 70 anos de idade e 26 deles dedicados ao trabalho com crianças e adolescentes em situação de risco, o religioso tem acompanhado de perto o drama das cracolândias, em especial nas áreas de Manguinhos e do Jacarezinho.  Com um grupo de voluntários da Casa do Menor e de outras instituições, o padre visita os dependentes químicos que agora se concentram no que ele chama de “cracolândia volante”, formada na Avenida Brasil e na entrada da Ilha do Governador.  Padre Renato encaminhou uma carta à ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, em que denuncia a realidade sobre a remoção dos moradores de rua e cobra uma solução que devolva a dignidade a essas pessoas. 

Jornal Testemunho de Fé – Qual sua análise sobre as políticas governamentais de combate às drogas?

Padre Renato Chiera – O problema das drogas, que considero a doença do século, está sendo colocado como prioridade pelos governos, mas é preciso preparo e profissionalismo. Despertou-se, de repente, para este problema por um simples motivo: mostrar uma cidade maravilhosa e segura para eventos importantíssimos. Por causa disso, se justifica, então, uma limpeza étnica e social? Espero que não seja dessa forma e que, no Rio, possa nascer algo de referência para o Brasil.

TF – Como o senhor avalia, em específico, o trabalho de combate ao crack no Rio?

Padre Renato – O governo do Rio está de parabéns em encarar esta tragédia. Porém, ele não está preparado, pois não conta com estruturas de apoio necessárias. Não se começa uma ação com esta complexidade sem programar antes uma metodologia, os passos a serem dados e as estruturas indispensáveis para sua realização. Não se começa uma guerra (contra o crack) sem os soldados, sem os equipamentos e sem retaguarda. Não se recolhe uma pessoa, se acolhe uma pessoa. O resto é superficialidade inadmissível e irresponsabilidade.

TF – Qual é sua opinião sobre a instalação de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) para controlar o tráfico nos morros?

Padre Renato – Em 2010, começou-se a entrar nas favelas, o que diminuiu a visibilidade das armas dos traficantes, mas aumentou a visibilidade de armas dos policiais, dando a dura sensação de áreas de guerra. O aumento da violência em São Paulo e a violência que retorna ao Complexo do Alemão deveriam ensinar: não se resolve violência com violência. O estado usa a mesma violência dos bandidos, ou mesmo maior.

TF – Houve redução no tráfico após as UPPs?

Padre Renato – As UPPs diminuíram o tráfico ostensivo nas favelas, mas não a organização do tráfico, que migrou para outros lugares, se espalhando pela Baixada Fluminense e pelo Brasil afora, aumentando assustadoramente a violência. O tráfico continua, mas em formas mais disfarçadas, nas mesmas favelas, encobertado agora por parte da polícia, ou assumido pelos milicianos, que são piores de que os traficantes. Eles contam com a cobertura da polícia e até do governo, que ainda não invadiu nenhuma favela ocupada pelos milicianos. Sabemos que os milicianos estão impondo uma verdadeira máfia e terror, com aparência de uma falsa paz e libertação do tráfico, agora controlado por eles.

TF - Como é o trabalho que o senhor realiza nas cracolândias?

Padre Renato – Há mais de um ano, estamos visitando as comunidades de Manguinhos e Jacaré, cemitérios de vivos que esperam a morte e se juntam para superar a solidão, a rejeição, o abandono e se consolam queimando pedras. Entramos nestes lugares de morte e de desespero para levar esperança, simplesmente ouvindo e partilhando seus sofrimentos, para mostrar que elas são muito amadas por Deus e por nós, que têm direito a uma vida digna, e que nós estamos à disposição para ajudá-las. Sem recolhimento compulsório ou presença maciça de guardas e policiais, um bom número de homens e mulheres já conseguiu sair deste inferno, através de nossa presença silenciosa e sem armas.

TF – Durante essas visitas, quais os relatos que se escuta com mais frequência?

Padre Renato – São muitas histórias de abandono por parte dos pais, violência doméstica e sexual, falta de amor, de atenção, de emprego, falta de perspectiva futura de vida. Confesso que é difícil falar com estes meninos que parecem loucos atrás de pedras. Quando eu perguntava se alguém já tinha entrado lá para encontrá-los e simplesmente ouvir o sofrimento que os levaram a entrar nesta vida escrava, a resposta era: “não padre. Aqui só entra a polícia para dar tiros na gente. Não se vê médico, nem assistência de qualquer tipo. Muita gente, lá fora, quer mesmo que morramos”. Nunca na minha vida vi realidades tão horrorosas e desumanas, piores que os campos de concentração nazistas que já visitei.

TF – Tem-se realizado diversas ações de recolhimento e internação compulsória nas cracolândias. Qual sua visão sobre essas ações?

Padre Renato – Iniciou-se este processo antidroga na pior das formas: expulsando com violência e tirando os usuários compulsivamente das ruas. Eles não são criminosos, mas doentes, excluídos em mil formas, rejeitados, não amados, fruto e retrato de uma sociedade que gera, mas não cria, não educa e, sobretudo, não ama. Uma sociedade que os criminaliza e quer eliminar para calar a boca de quem nos acusa e interpela. Eles expressam um sofrimento do qual não são os culpados; entram nas drogas para preencher carências, rejeições, abandonos, perdas e para suportar dores infinitas. São violentos porque não são amados. A maior violência é não ser um filho amado. Ao grito por presença e por amor, que não queremos escutar, respondemos com violência, desprezo e punição, e queremos que eles ainda nos agradeçam, pois os salvamos do crack. São eles que devem nos dizer o que precisam para sair do crack. Sem esta percepção e consciência fundamental, não iremos para canto nenhum e não encontraremos soluções.

TF – Qual seria, então, a melhor saída para esta problemática?

Padre Renato – Acredito nas boas intenções, mas é estranho que um governo que deseja resolver problemas tão complexos e difíceis não preparou nada ou quase nada, a não ser o aparato militar para expulsão. Pela nossa experiência, precisa-se de espaços para acolhimento e recuperação da identidade e reestruturação da pessoa, infraestrutura sanitárias, centros de desintoxicação, comunidades terapêuticas, pessoas com vocação e preparo profissional, capazes de amar e acolher e perspectivas concretas de futuro. É estranho que estas ações e decisões não tenham sido vistas e partilhadas com a sociedade e segmentos mais experientes neste campo. Nossos deputados nunca se debruçaram para ajudar a encarar a problemática e encontrar soluções verdadeiras. Agora, todos estão de acordo com o recolhimento de qualquer jeito. Temos medo dos filhos que geramos e os demonizamos para nos sentirmos inocentes.

TF – Quais os fatores que contribuem para o aumento do consumo de crack no país?

Padre Renato – O crack não é só caso de polícia, mas é problema de saúde, de políticas públicas que visem às famílias dessas pessoas; é problema de perdas de valores na sociedade, nas famílias e nas escolas (“estado” laicista, não leigo, que quer banir a religião com seus valores); é problema de rejeição e falta de amor, de educação e de escola; é problema, no primeiro momento, de desintoxicação, de tratamento e recuperação em comunidades terapêuticas e, depois, de escolarização, de profissionalização, de inserção na sociedade e no mercado de trabalho. Precisa-se, nisso tudo, de pessoas “vocacionadas”, capazes de escutar, acolher e amar. Além disso, ao invés de insistir em políticas ineficazes, precisa-se investir em prevenção, tratamento e reabilitação. A internação compulsória é condenada internacionalmente como ineficiente, estigmatizadora e que viola os direitos humanos. É preciso ousadia e criatividade para explorar novas soluções. Ainda temos esperança.
Jornal Testemunho de Fé

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